07/03/2014

Conto: Carmilla

Oi pessoas! Como eu havia prometido na resenha que fiz de Contos de Vampiros, segue para vocês um dos mais famosos contos presente no livro, Carmilla, do autor Joseph Sheridan LeFanu. Boa leitura!

Sinopse: Carmilla conta a história de Laura, uma jovem e despreocupada moça, que vive com seu pai numa região afastada das grandes cidades, num antigo castelo. E quando vem a conhecer Carmilla uma lindíssima moça, que veio morar em sua casa e tornou-se sua melhor amiga, coisas estranhas começam a acontecer com ela e com muitas outras pessoas do povoado próximo. Que mistérios esconderia Carmilla, a mulher de beleza estonteante e hábitos estranhos? Que amores teria em seu coração, de onde viera, qual sua verdadeira natureza? E por que Laura passara a ter tantos e tão inquietantes pesadelos, desde que Carmilla viera morar no castelo?




I - Um Susto Inicial

Na Estíria, nós, pessoas da nobreza sem recursos, habitamos um castelo ou schloss. Uma pequena renda, nessa parte do mundo, vale muito. Um pouco ao ano faz maravilhas. Nossa escassez controlada era responsável pelas pessoas da casa. Meu pai é o Inglês e eu ostento um nome inglês, embora nunca tenha visto a Inglaterra. Mas aqui, neste lugar solitário e primitivo, onde tudo é tão maravilhosamente barato, eu realmente não vejo como mais dinheiro iria, de alguma forma, acrescentar algo ao nosso conforto ou mesmo aos nossos luxos. Meu pai fora do Serviço Austríaco e, reformado, com uma pensão e com seu patrimônio, comprou esta residência feudal e o pequeno terreno em que se encontra por uma pechincha.

Nada pode ser mais pitoresco ou solitário. Fica numa ligeira elevação em uma floresta. A estrada, muito antiga e estreita, passa em frente de uma ponte levadiça, jamais erguida em meu tempo, e seu fosso tem um poleiro e muitos cisnes. Flutuando sobre a superfície da água, frotilhas de lírios brancos. Dominando tudo isso, o schloss mostra sua fachada com muitas janelas, suas torres e sua capela gótica. A floresta abre-se em uma pitoresca e irregular clareira e muito antes do portão, à direita, uma íngreme ponte gótica acompanha a estrada que serpenteia ao longo de um riacho que mergulha em profundas sombras através do bosque. Eu disse que este é um lugar muito solitário. Julgue se digo a verdade. Olhando da porta da sala de entrada, a floresta em que nosso castelo se localiza estende-se quinze milhas para a direita e doze para a esquerda. A aldeia habitada mais próxima dista cerca de sete de suas milhas inglesas, à esquerda. O schloss tradicional mais próximo é o do velho General Spielsdorf, cerca de vinte milhas de distância para a direita.

Eu disse a aldeia “habitada” mais próxima porque há, apenas três milhas a oeste, ou seja, na direção do castelo do General Spielsdorf, uma aldeia arruinada, com sua pitoresca e minúscula igreja, agora sem teto, em cujo corredor estão os túmulos desfeitos da orgulhosa família Karnsteins, agora extinta, que uma vez possuiu igualmente o desolado chateau que, na espessura da floresta, contempla do alto as silenciosas ruínas da cidade.

A respeito da causa da deserção do inesquecível e melancólico local, existe uma lenda que vou narrar a você em uma outra ocasião. Devo dizer-lhe agora como é muito pequeno o grupo que constitue os habitantes do nosso castelo. Não incluo servos, dependentes ou aqueles que ocupam cômodos nos edifícios anexos ao schloss. Ouça e admire! Meu pai, que é o mais gentil homem sobre a face da terra, mas velho, e eu, que na data da minha história contava apenas dezenove anos. Oito anos se passaram desde então. Eu e meu pai constituíamos a família no schloss. Minha mãe, uma senhora estiriana, morreu na minha infância, mas eu tinha uma bondosa governanta que esteve comigo, eu poderia dizer, desde a minha infância. Não consigo me lembrar de um momento em que seu gordo e bondoso rosto não fosse uma figura familiar em minha memória.

Essa era Madame Perrodon, nascida em Berna, cujo cuidado e bom caráter, em parte, supriu para mim a perda de minha mãe, de quem eu nem me lembro de tão cedo que a perdi. Ela era a terceira pessoa em nossa pequena confraria no jantar. Havia uma quarta, Mademoiselle De Lafontaine, uma mulher como você denomina, creio eu, uma educadora de refinamento. Falava francês e alemão, Madame Perrodon francês e inglês incorreto, a que o meu pai e eu acrescentávamos o inglês que, parte para evitar tornar-se uma língua perdida entre nós e parte por motivos patrióticos, falávamos todos os dias. A conseqüência era uma Babel da qual estranhos costumavam rir e que não vou tentar reproduzir nesta narrativa. Havia dois ou três jovens amigas, próximas da minha idade, que eram visitantes ocasionais em períodos mais longos ou mais curtos. A essas visitas ocasionalmente eu retribuía. Esses eram nossos recursos sociais à disposição, mas, evidentemente, havia a possibilidade de visitas de vizinhos de apenas cinco ou seis léguas de distância. Minha vida era, não obstante, solitária, posso assegurar-lhe. Minhas governantas exerciam tanto controle sobre mim que você poderia supor o que tais sábia pessoas fariam no caso de uma menina bastante mimada, cujo único parente permitia-lhe escolher seu próprio caminho em quase tudo.

O primeiro acontecimento em minha vida que produziu uma sensação terrível em minha mente, que na realidade nunca foi apagada, foi um dos primeiros incidentes de que posso me lembrar. Algumas pessoas vão pensar que foi tão insignificante que não deveria ser aqui registrado. Você verá, no entanto, mais adiante, por que o menciono. O berçário, como era chamado, onde eu tinha tudo para mim, era um grande aposento na parte superior do castelo, com um íngreme telhado de carvalho. 

Eu não devia ter mais de seis anos de idade quando, uma noite, acordei. Olhando ao redor do quarto, de minha cama, não consegui ver o que veria normalmente. Minha babá não estava lá e me vi sozinha. Eu não estava assustada porque era uma dessas crianças que são felizes estudadamente mantidas na ignorância das histórias de fantasmas, de contos de fadas e de todas essas bobagens que nos fazem cobrir a cabeça quando uma porta se entreabre de repente ou o brilho de uma vela se extinguindo faz uma sombra dançar na parede, perto de nós. Eu estava aborrecida e insultada por achar-me, como imaginava, negligenciada, e comecei a choramingar, preparatórias para uma amável descarga de choro que se seguiria. Foi quando, para minha surpresa, vi um rosto solene, mas muito lindo, olhando-me ao lado da cama. Era o de uma jovem ajoelhada, com as mãos sob o cobertor.

Olhei para ela com uma espécie de prazerosa admiração e parei de choramingar. Ela me acariciou com as mãos e ficou ao lado da cama, atraindo-me para ela, sorrindo. Senti-me imediata e deliciosamente calma e adormeci novamente. Fui acordada pela sensação de duas agulhas penetrando meu peito profundamente e chorei muito alto. A jovem recuou, com os olhos fixos em mim e em seguida deslizou para o chão e, supus, escondeu-se debaixo da cama. Eu estava agora, pela primeira vez, assustada e gritei com todas as minhas forças. Camareiras, babás, governantas, todas acudiram e, após ouvir a minha história, fizeram pouco dela, enquanto faziam de tudo para acalmar-me. Mas, criança como era, podia perceber que seus rostos estavam pálidos e com um inesperado olhar de ansiedade. Eu as vi olhar debaixo da cama, pelo quarto, sob mesas e entreabrir armários. A camareira sussurrou para a enfermeira:

— Põe a sua mão ao longo desta parte da cama. Alguém esteve aqui e tenho certeza de que não foi você. O lugar ainda está quente.

Lembro-me da babá tomando-me no colo e todas as três examinaram meu peito, onde eu disse que senti a punção, afirmando que não havia qualquer sinal visível de que tal coisa tivesse acontecido comigo. A governanta e as duas outras servas que estavam a cargo do berçário permaneceram sentadas durante toda a noite e, a partir daquele momento, uma serva sempre permaneceu ali até que eu tivesse cerca de quatorze anos.

Andei muito nervosa por um longo tempo depois disso. Um médico foi chamado, era pálido e idoso. Quão bem me lembro de seu rosto muito triste, ligeiramente picado pela varíola, e sua peruca castanha! Por um bom tempo, a cada dois dias, ele vinha e me dava remédios que, é claro, eu odiava.

Na manhã após ter visto essa aparição, eu estava em estado de terror e não podia suportar ficar sozinha nem a luz natural, mesmo que fosse por um momento. Lembro-me de meu pai chegando e ficando à beira do leito, conversando animadamente, fazendo à enfermeira uma série de perguntas, rindo muito amavelmente em uma e outra resposta, acariciando-me no ombro, beijando-me e dizendo-me para não ter medo, que não era nada mais do que um sonho e que nada iria me machucar. Mas não fiquei confortada, pois eu sabia que a visita da mulher não fora um sonho estranho e continuei terrivelmente assustada.

Fiquei um pouco consolada quando a babá assegurou-me que era ela que havia chegado, olhado para mim e se deitado na cama ao meu lado e que eu deveria estar meio adormecida para não ter reconhecido seu rosto. Mas isso, apesar de apoiado pela enfermeira, não me satisfez totalmente. Lembro-me, no decurso desse dia, de um venerável senhor, numa batina preta, vindo até o aposento com a babá e a governanta, falado um pouco com elas e muito gentilmente comigo. Seu rosto era muito doce e suave e ele me disse que iam rezar. Uniu as mãos e pediu-me para dizer, suavemente, enquanto eles oravam:

— Senhor, ouvi todas as boas orações por nós, pela graça de Jesus.

Acho que estas foram as palavras exatas, pois eu muitas vezes as repeti para mim e minha enfermeira obrigou-me a dizê-las em minhas orações. Lembro-me muito bem do rosto doce e pensativo do velho homem de cabelo branco em sua batina negra, de como ele permaneceu no aposento, com o inexpressivo mobiliário de trezentos anos ao seu redor e a escassa luz entrando em sua atmosfera sombria através das estreitas treliças. Ele se ajoelhou com as mulheres e orou em voz alta com uma voz de fervoroso trinado, pareceu-me, por um longo tempo. Eu esqueci de toda a minha vida anterior a esse evento. De algum tempo depois, tudo também é obscuro, mas as cenas que acabo de descrever destacam-se vívidas como isoladas imagens da fantasmagoria cercada pela escuridão.

II - A Convidada

Vou lhe dizer uma coisa tão estranha que irá exigir toda sua fé em minha sinceridade para acreditar em minha história. Não só é verdade, apesar de tudo, mas a verdade da qual fui uma testemunha ocular. Era um agradável verão e meu pai convidou-me, como às vezes fazia, para um pequeno passeio com ele ao longo dessa linda vista da floresta que já descrevi e que se estendia diante do schloss.

— O General Spielsdorf não poderá vir até nós tão logo quanto eu esperava — disse meu pai, enquanto prosseguíamos em nossa caminhada.

Ele deveria ter-nos pagado uma visita de algumas semanas e nós esperávamos sua chegada no dia seguinte. Ele deveria trazer uma menina, sua sobrinha e aia, Mademoiselle Rheinfeldt, que eu nunca tinha visto, mas de quem tinha ouvido a descrição de ser uma menina muito encantadora e em cuja companhia eu havia prometido a mim mesma muitos dias felizes.

Fiquei mais decepcionada do que uma menina que vive em uma cidade ou um bairro movimentado pode imaginar. Essa visita, e o novo conhecimento prometido, tinham preenchido meus sonhos diários por muitas semanas.

— E quando ele vira? — perguntei.
— Não até o outono. Nem por dois meses, me atrevo a dizer — respondeu. — E estou muito feliz agora, querida, que você nunca conheceu Mademoiselle Rheinfeldt.
— E porquê? — perguntei, tanto mortificada quanto curiosa.
— Porque a pobre moça está morta — ele respondeu. — Eu esqueci completamente que nada lhe havia dito a esse respeito, pois você não estava no aposento quando eu recebi a carta do General essa tarde.

Fiquei muito chocada. O General Spielsdorf tinha mencionado em sua primeira carta, seis ou sete semanas antes, que ela não estava tão bem como ele gostaria que estivesse, mas não havia nada que sugerisse a remota suspeita de perigo.

— Aqui está a carta do General — disse ele, entregando-a para mim. — Temo que ele esteja em grande aflição, a letra parece-me de ter sido escrita muito distraidamente.

Nós nos sentamos num rude banco, sob um grupo de magníficas tílias. O sol se punha, com todo seu melancólico esplendor, por trás do horizonte silvestre. O riacho que corre ao lado de nossa casa e passa sob a íngreme e velha ponte a que já referi, surgia através de um grupo de árvores nobres, quase aos nossos pés, refletindo em sua corrente o desbotado carmesim do céu. A carta do General Spielsdorf era tão extraordinária, tão veemente e, em alguns trechos, tão contraditória, que a li duas vezes – a segunda vez em voz alta para o meu pai – e ainda assim fui incapaz de dar conta de seu conteúdo, a não ser supor que o luto havia transtornado sua mente.

Ele disse: “Eu perdi a minha querida filha, como tal, pois assim eu a amava. Durante os últimos dias da doença de Bertha, não fui capaz de escrever para você. Até então eu não tinha idéia do perigo que ela corria. Eu a perdi e, agora, soube de tudo, demasiado tarde. Ela morreu na paz da inocência e na esperança de um glorioso e abençoado futuro. O demônio que traiu a nossa dedicada hospitalidade fez tudo. Eu pensava que estivesse recebendo em minha casa inocência, alegria, uma encantadora companhia para minha perdida Bertha. Céus! Como fui tolo! Agradeço a Deus que minha criança morreu sem suspeitar da causa de seu sofrimento. Ela se foi sem muito conjecturar sobre a natureza de sua doença e a amaldiçoada paixão do agente de toda essa miséria. Devotarei meus dias restante para perseguir e extinguir um monstro. Digo que espero realizar meu justo e misericordioso propósito. Atualmente, existe apenas um vislumbre de luz para guiar-me. Amaldiçoo vaidosa incredulidade, o meu desprezível fingimento de superioridade, a minha cegueira, minha obstinação – tudo – demasiado tarde. Não consigo escrever ou falar coerentemente agora. Estou distraído. Então, logo que deva ter-me recuperado um pouco, pretendo dedicar um tempo para investigar, o que pode eventualmente levar-me tão longe como Viena. Em algum momento, no outono, dois meses por conseguinte, ou mais cedo, se eu viver, vou vê-lo – isto é, se você me permitir. Vou então dizer-lhe tudo o que eu sequer ouso colocar no papel agora. Adeus. Reze por mim, querido amigo.”

Nesses termos terminou essa estranha carta. Embora eu nunca tenha visto Bertha Rheinfeldt, meus olhos encheram-se de lágrimas na súbita revelação. Fiquei assustada, bem como profundamente decepcionada. O sol já tinha se posto e era crepúsculo quando devolvi a carta do General a meu pai. Era uma noite clara e suave e nós divagamos, especulando sobre os possíveis significados das violentas e incoerentes frases que eu havia acabado de ler. Tivemos de caminhar cerca de uma milha antes de atingir a estrada que passa em frente ao schloss e no momento em que a lua luzia brilhantemente. Na ponte levadiça, encontramos Madame Perrodon e Mademoiselle De Lafontaine, que tinham saído, sem suas toucas, para desfrutar das delícias do luar. Ouvimos as vozes tagarelando em animado diálogo enquanto nos aproximávamos. Nós nos juntamos a elas na ponte levadiça e nos viramos para admirar com elas a bela cena. A clareira através da qual havíamos recém-caminhado estendia-se a nossa frente. A nossa esquerda, o estreito caminho estende-se ao longe sob aglomerações de vetustas árvores e se perdia de vista no meio da floresta espessa. À direita, a mesma estrada atravessa a íngreme e pitoresca ponte, que fica perto de uma torre arruinada que uma vez guardara aquela passagem.

Para além da ponte, uma abrupta elevação se erguia, coberta de árvores e mostrando nas sombras algumas rochas cinzentas cobertas de hera. Ao longo do gramado e das áreas baixas, uma fina película de névoa ia avançando como fumaça, marcando as distâncias com um véu transparente. Aqui e ali podíamos ver o rio ligeiramente cintilando ao luar. Nenhuma cena mais suave e mais doce poderia ser imaginada. A notícia que acabara de ouvir tornou tudo melancólico, mas nada poderia perturbar o seu caráter de profunda serenidade e a encantada glória e imprecisão da perspectiva. Meu pai, que apreciava o pitoresco, e eu ficamos olhando em silêncio ao longo da extensão abaixo de nós. As duas boas governantas, de pé um pouco atrás de nós, comentaram a cena e foram eloquentes sobre a lua.

Madame Perrodon era gorda, de meia-idade e romântica, falou e suspirou poeticamente. Mademoiselle De Lafontaine – em razão de seu pai, que era um alemão, assumir ser psicológo, metafísico e de certa forma um místico – agora declarava que, quando a lua brilha com uma luz tão intensa, era bem sabido que indicava uma especial atividade espiritual. O efeito da lua cheia em tal estado de brilho era manifesto. Ele agia em sonhos, ele agia em loucuras, ele agia em pessoas nervosas, tinha influências físicas maravilhosas relacionadas com a vida. Mademoiselle relatou que seu primo, que era tripulante de um navio mercante, tendo tirado uma soneca no convés em uma noite assim, deitado de costas, com o rosto voltado à luz na lua, tinha acordado, após um sonho com uma velha mulher agarrando-lhe a bochecha, com suas marcas horrivelmente desenhadas em uma face e seu semblante jamais recuperou seu equilíbrio novamente.

— A lua, esta noite, — ela disse — está cheia de idílica e magnética influência e veja, quando você olha para a frente do schloss, como todas as suas janelas piscam e bruxuleiam com um esplendor prateado, como se mãos invisíveis iluminassem as salas para receber hóspedes encantados. Há indolentes estados de espírito nos quais, indispostos para falarmos, o falar dos outros é agradável aos nossos apáticos ouvidos e olhei, satisfeita com o tilintar da conversa das senhoras.
— Estou em um de meus deprimentes estados esta noite — disse meu pai, depois de um silêncio e, citando Shakespeare, a quem, para manter ativo nosso inglês, ele costumava ler em voz alta, disse:
— Na realidade não sei por que sou tão triste. Isso me aborrece: você diz que isso aborrece você; mas como me tornei isso – conseguiu-o. Eu esqueci o resto. Mas sinto como se algum grande infortúnio pairasse sobre nós. Suponho que a aflita carta do pobre General tenha alguma coisa a ver com isso.

Nesse momento, o inesperado som de rodas de uma carruagem e de muitas patas, na estrada, chamou a nossa atenção. Pareciam se aproximar do terreno alto com vista para a ponte e, rapidamente, as silhuetas surgiram a partir daquele ponto. Dois cavaleiros inicialmente atravessaram a ponte e, em seguida, veio um carro puxado por quatro cavalos e dois condutores. Parecia ser uma carruagem de viagem de uma pessoa de classe e todos nós ficamos imediatamente absorvidos em assistir a esse espetáculo muito incomum. Tornou-se, em poucos momentos, muito mais interessante, assim que o transporte passou na cimeira da íngreme ponte. Um dos cavalos líderes, assustando-se, transmitiu seu pânico aos outros e, após uma empinada ou duas, todo o grupo disparou junto num galope selvagem e impetuoso. Passando entre os cavaleiros que estavam à frente, vieram ao longo da estrada trovejantes em nossa direção com a velocidade de um furacão.

A excitação da cena tornou-se mais dolorosa pelos claros e intermináveis gritos de uma voz feminina vindo da janela da carruagem. Fomos tomados de curiosidade e horror: eu em silêncio, o resto com variadas manifestações de terror. Nossa expectativa não durou muito. Mesmo antes de chegar à ponte levadiça do castelo, na rota em que se aproximavam, há, à beira da estrada, uma magnífica árvore viscosa. Do outro lado, uma antiga cruz de pedra, à vista da qual os cavalos, agora indo em um ritmo totalmente assustador, desviou de forma a levar a roda sobre as raízes projetadas da árvore.

Eu sabia o que iria acontecer. Cobri meus olhos, incapaz de ver e virei minha cabeça. Ao mesmo tempo, ouvi um grito de minhas damas amigas, que haviam recuado um pouco. A curiosidade abriu meus olhos e eu vi uma cena de total confusão. Dois dos cavalos estavam no chão, o transporte jazia a seu lado com as rodas no ar. Os homens ocupavam-se, removendo os destroços e uma mulher com ar e figura senhoriais tinha saído e ficado com as mãos crispadas, erguendo o lenço que estava nelas e depois levando-o aos olhos. Através da porta da carruagem foi erguida uma jovem que parecia estar morta. Meu velho e querido pai já estava ao lado da idosa senhora, com o chapéu na mão, evidentemente oferecendo sua ajuda e os recursos de seu schloss. A mulher não parecia ouvi-lo ou ter olhos para qualquer coisa, a não ser para a delicada menina que estava sendo colocada contra o encosto do banco.

Aproximei-me. A mocinha estava aparentemente atordoada, mas certamente não estava morta. Meu pai, que atribuía-se ter alguma coisa de médico, apenas tocou seus dedos no pulso dela e garantiu à mulher, que se declarou ser a própria mãe, que o pulso, embora fraco e irregular, estava, sem dúvida, ainda perceptível. A mulher crispou suas mãos e olhou para o alto, como se em um momentâneo arroubo de gratidão, mas imediatamente ela adotou novamente uma postura teatral, que é, creio, natural para algumas pessoas. Ela era o que se chama de uma mulher bem apessoada para sua idade e deve ter sido bonita. Ela era alta, mas não magra, vestida de veludo preto e parecia bastante pálida, com um orgulhoso e autoritário semblante, mas agora estranhamente agitada.

— Quem nunca foi tão sujeita à calamidade? — Eu a ouvi dizer, com mãos crispadas, quando me aproximei. — Aqui estou eu, em uma jornada de vida e morte, em um processo onde perder uma hora será possivelmente perder tudo. Minha criança não terá se recuperado o suficiente para retomar seu percurso por quem pode dizer quanto tempo? Devo deixá-la: eu não posso, não ouso, demorar. Quão distante, senhor, pode me dizer, está o povoado mais próximo? Devo deixá-la e não verei minha querida, ou mesmo ouvirei dela, até o meu regresso, três meses, portanto.

Eu puxei meu pai pelo casaco e fervorosamente sussurrei em seu ouvido:
— Oh, papai, peça a ela para deixá-la ficar com a gente, seria tão delicioso. Peça, peça!
— Se a Madame entregar sua filha aos cuidados de minha filha e da sua boa governanta, Madame Perrodon, e permitir-lhe permanecer como nossa convidada, sob meu encargo, até seu retorno, vai nos conferir uma distinção e uma obrigação e vamos tratá-la com todo o  cuidado e dedicação que tão sagrada confiança merece.
— Eu não posso fazer isso, senhor, seria atarefar sua bondade e generosidade cruelmente — disse a mulher, distraidamente.
— Seria, pelo contrário, conferir-nos uma grande graça no momento em que mais precisamos dela. Minha filha acaba de ser decepcionada por uma cruel desdita, por uma visita pela qual tinha longamente antecipado momentos de grande felicidade. Se você confiar esta moça aos nossos cuidados, será seu melhor consolo. A aldeia mais próxima de seu percurso é distante e não oferece uma pousada onde você poderia pensar em colocar a sua filha. Não se pode permitir que ela continue a viagem para qualquer distância considerável sem perigo. Se, como você disse, não pode suspender sua viagem, deve despedir-se dela esta noite e em nenhum lugar pode fazer isso com as mais honestas garantias de cuidados e de ternura do que aqui.

Havia algo no ar dessa senhora de aparência tão ilustre e até mesmo impositiva e na sua forma tão envolvente capaz de impressionar qualquer um, além da dignidade de seus apetrechos, com a convicção de que ela era uma pessoa de responsabilidade. Por esse tempo, a carruagem fora posta em sua posição vertical e os cavalos, muito dóceis, atrelados novamente.

A mulher lançou a sua filha um olhar que eu percebi não ser tão afetuoso como alguém poderia ter antecipado a partir do início da cena. Depois, ela acenou ligeiramente para meu pai, afastou-se dois ou três passos com ele da audiência e conversou com ele com um semblante fixo e severo, diferente daquele com que tinha falado até então. Eu estava cheia de admiração por meu pai não parecer perceber a mudança e também inenarravelmente curiosa para saber o que poderia ser o que ela estava falando, quase em seu
ouvido, com tanta seriedade e rapidez. Dois ou três minutos, no máximo, eu acho que ela se manteve ocupada nisso, então ela se virou e, caminhou poucos passos até onde jazia sua filha, apoiada por Madame Perrodon. Ela se ajoelhou a seu lado por um momento e sussurrou, como Madame supôs, uma breve bênção em seu ouvido. Depois de apressadamente beijá-la, subiu em sua carruagem, a porta foi fechada, os cocheiro em seus majestosos librés saltaram para a boleia, o batedores apressaram-se, os postilhões estalaram seus chicotes, os cavalos saltaram, repentinamente mergulhados em um trote furioso que em breve tornou-se novamente um galope e o transporte rodou para longe, seguido no mesmo ritmo rápido pelos dois cavaleiros na retaguarda.

III- Comparando Sonhos

Seguimos o cortejo com os olhos até que ele se perdeu rapidamente de vista no brumoso bosque e o próprio som das patas e das rodas desapareceu no ar da noite silenciosa. Nada ficou para nos garantir que a aventura não tinha sido uma ilusão de momento, a não ser a jovem, que só naquele momento abriu os olhos. Eu não podia ver, pois o rosto dela não estava voltado para mim, mas ela levantou a cabeça, aparentemente olhando ao redor, e eu ouvi uma voz muito doce queixosamente perguntar:

— Onde está mamãe?
Nossa boa Madame Perrodon respondeu carinhosamente e acrescentou algumas palavras de conforto. Eu então a ouvi perguntar:
— Onde estou? Que lugar é este? — e, depois disso, ela disse — eu não vejo o carro. E Matska, onde está ela?

Madame respondeu a todas as suas perguntas, na medida em que as entendia e gradativamente a jovem foi se lembrando de como o contratempo surgira, ficando feliz ao ouvir que nenhum dos acompanhantes ou da carruagem se ferira. Ao saber que sua mãe a deixara ali até seu retorno, em três meses, ela chorou. Eu ia juntar meu consolos aos de Madame Perrodon quando Mademoiselle De Lafontaine, colocando a mão em meu braço, disse:

— Não se aproxime, uma só no momento é tudo com quem ela pode conversar. Uma
pequena emoção poderia possivelmente subjugá-la.

Logo que ela estiver confortavelmente na cama, pensei, vou correr até ao quarto e vê-la. Meu pai, nesse meio termo, tinha enviado um servo a cavalo para buscar o médico, que vivia cerca de duas léguas de distância. Um aposento estava sendo preparado para receber a jovem. A estranha então ergueu-se e, apoiada no braço de Madame, caminhou lentamente ao longo da ponte levadiça para o portão do castelo. No hall de entrada, servos esperavam para recebê-la e ela foi conduzida imediatamente para seu quarto. A sala que costumávamos usar como nossa sala de estar é longa, com quatro janelas que olhavam para o fosso e a ponte levadiça, acima do cenário da floresta que acabei de descrever. É decorada com carvalho antigo entalhado, com grandes armários esculpidos, com as cadeiras revestidas com veludo carmesim de Utrecht. As paredes são cobertas com tapetes, cercados por grandes molduras douradas, com cenas tão grandes como a vida, com antigos e muito curiosos hábitos e temas representando a caça, falcoaria e geralmente festivos. Não é demasiado pomposo para não ser extremamente confortável e ali nós tomávamos nosso chá, pois com sua habitual e patriótica inclinação, papai insistia que a bebida nacional devia fazer a sua aparição regular junto com nosso café e chocolate. Sentamo-nos ali naquela noite e, iluminados por velas, estávamos conversando sobre a aventura da noite.

Madame Perrodon e Mademoiselle De Lafontaine estavam ambas em nossa reunião. A jovem estrangeira mal se deitou, já mergulhou em um sono profundo e aquelas senhoras a tinham deixado aos cuidados de uma serva.

— Como lhe parece nossa convidada? — perguntei, logo que entrou Madame. — Diga-me tudo sobre ela!
— Eu gostei muito dela — respondeu Madame — ela é, ao que me parece, a criatura mais bonita que eu já vi. Tem aproximadamente a sua idade e é muito doce e agradável.
— Ela é absolutamente linda — disparou Mademoiselle, que tinha dado uma olhadelapor um momento no quarto da forasteira.
— E que voz doce! — acrescentou Madame Perrodon.
— Vocês observaram que havia uma mulher na carruagem, após ter sido endireitada novamente, que não saiu, mas apenas olhou pela janela? — indagou Mademoiselle.
— Não, nós não a tínhamos visto.
Em seguida, ela descreveu uma horrível mulher negra, com uma espécie de turbante colorido na cabeça, que ficou olhando todo o tempo da janela da carruagem, acenando com a cabeça e sorrindo zombeteiramente para as senhoras, com reluzente olhos brancos e grandes olhos, e seus dentes arreganhados como se em fúria.
— Vocês notaram que bando de homens mal-encarados eram os servos? — indagou
Madame.
— Sim — disse meu pai, que tinha acabado de entrar, — feios, indivíduos com uma cara de vira-latas como eu nunca vi na minha vida. Espero que eles não roubem a pobre senhora na floresta. Eles são espertos vilões e se apossam de tudo em minutos.
— Atrevo-me a dizer que estão muito desgastados com a longa viagem — disse Madame. — Além do olhar malvado, seus rostos eram tão estranhamente magros, escuros e mal-humorados. Estou muito curiosa, eu própria, mas atrevo-me a dizer que a moça vai nos contar tudo sobre isso amanhã, se ela estiver suficientemente recuperada.
— Eu não acho que ela vai — disse meu pai, com um sorriso misterioso e um pequeno sinal de cabeça, como se ele soubesse mais sobre ela do que cuidou em nos dizer. Isso nos deixou ainda mais curiosas pelo que havia se passado entre ele e a mulher de veludo preto, na breve mas fervorosa entrevista que havia imediatamente precedido sua partida. Estávamos praticamente sozinhos, quando lhe roguei que me dissesse. Ele não me pareceu muito interessado.
— Não há razão específica para que eu não deva lhe dizer. Ela expressou uma certa relutância em perturbar-nos com o cuidado da filha, dizendo que ela tinha saúde delicada e nervosa, mas não objeto de qualquer tipo de apreensão – ela manifestou isso – nem ilusão, sendo, na realidade, perfeitamente sã.
— Muito estranho ela dizer isso tudo! — interpolei. — Foi tão desnecessário.
— De qualquer forma, foi dito, — riu ele — e como você deseja saber tudo o que se passou, o que foi de fato muito pouco, vou dizer. Ela então disse: Estou fazendo uma longa viagem de vital importância – ela enfatizou a palavra – rápida e secreta. Vou voltar para a minha filha em três meses.  No entanto, ela será omissa quanto a quem somos, de onde viemos e para onde estamos indo. É tudo o que ela disse. Ela falou um francês muito puro. Quando ela disse a palavra “secreta”, ela pausou durante alguns segundos, olhando severamente, seus olhos fixos nos meus. Eu imagino que ela deu grande importância a isso. Você viu como ela rapidamente foi embora. Espero não ter feito uma coisa muito tola, responsabilizando-me pela jovem.

De minha parte, fiquei encantada. Eu ansiava ver e falar com ela e apenas esperava que o médico o permitisse. Vocês, que vivem em cidades, não podem ter ideia de quão grande evento é a apresentação de um novo amigo, em tal solidão como a que nos cercava. O médico não chegou até quase uma hora da manhã, mas eu não podia mais ir para a minha cama e dormir, tanto quanto poderia ter ultrapassado, a pé, a carruagem com que a princesa em veludo preto tinha ido embora. Quando o médico veio até a sala de estar, tinha um relatório muito favorável sobre sua paciente. Ela estava sentada agora, seu pulso bem regular, aparentando estar perfeitamente bem. Ela não sofrera nenhum ferimento e o pequeno choque nervoso tinha sido um tanto inofensivo. Não poderia haver prejuízos certamente em minha visita a ela, se ambas desejávamos isso. Com essa permissão, enviei, de imediato, alguém para saber se ela me permitia visitá-la por alguns minutos no quarto dela. A serva retornou imediatamente dizendo que ela nada desejava mais.

Você pode ter certeza que eu não estava muito longe de avaliar por mim mesma essa permissão. Nossos visitantes ficam em um dos mais agradáveis aposentos do schloss. Era, talvez, um pouco pomposo. Havia uma sombria peça de tapeçaria no lado oposto ao pé da cama, representando Cleópatra com a áspide em seu peito, e outras clássicas e solenes cenas eram exibidas, um pouco desbotadas, nas outras paredes. Mas havia ouro entalhado e ricas e variadas cores suficientes nas outras decorações do quarto para mais do que resgatar a escuridão da antiga tapeçaria. Havia velas à beira do leito. Ela estava sentada. Sua delgada e bonita figura envolta na seda macia do roupão de banho, bordado com flores e alinhavado com espessas almofadas de seda, que a mãe havia atirado sobre os pés dela enquanto jazia sobre o chão. O que foi que, quando alcancei a lateral do leito e mal havia começado minha saudação, atingiu-me mudamente no momento e fez-me recuar um passo ou dois diante dela? Vou dizer-lhe.

Eu vi o mesmo rosto que visitara-me em minha infância, à noite, que se manteve tão fixo em minha memória e sobre o qual, por muitos anos, tantas vezes ruminei com horror, quando ninguém suspeitava sobre o que eu estava pensando. Era lindo, lindo mesmo, e quando eu a olhei inicialmente, tinha a mesma expressão
melancólica. Mas isso quase instantaneamente iluminou-se em um estranho sorriso de reconhecimento. Houve um silêncio completo de um minuto e, em seguida, na sequência ela falou. Eu
não pude.
— Que maravilhoso! — ela exclamou. — Doze anos atrás, eu vi seu rosto em um sonho e ele tem-me assombrado desde então.
— Maravilhoso realmente! — repeti, com um esforço para superar o horror que tinha por algum tempo suspenso minhas palavras. — Doze anos atrás, em visão ou realidade, eu certamente vi você. Eu não poderia esquecer o seu rosto. Manteve-se diante dos meus olhos desde então.

Seu sorriso havia suavizado. Seja como for que tivesse me sentido estranha com isso, havia dissipado isso e suas bochechas com covinhas estavam agora deliciosamente bonitas e inteligentes. Senti-me tranquilizada e prossegui no rumo que a hospitalidade indicava para dar-lhe as boas-vindas e para lhe dizer quanto prazer sua chegada acidental tinha dado a todos nós e, especialmente, que felicidade foi para mim. Eu tomei sua mão enquanto falava. Eu estava um pouco tímida, como o são as pessoas solitárias, mas a situação fez-me eloquente e mesmo corajosa. Ela apertou-me a mão, pôs as dela sobre a minha e seus olhos brilharam, enquanto, olhando precipitadamente nos meus, ela sorriu novamente e corou. Ela respondeu a minhas boas-vindas muito gentilmente. Sentei-me ao seu lado, ainda maravilhada, e ela disse:

— Devo contar-lhe minha visão sobre você. É muito estranho que você e eu pudéssemos ter tido, uma da outra, um sonho tão vívido, que cada uma pudesse ter visto, eu a você e você a mim, olhando-nos como o fazemos agora, quando, é claro, ambas éramos apenas crianças. Eu era uma criança de cerca de seis anos, despertei de um sonho confuso  incômodo e encontrei-me em um aposento, diferente de meu berçário, desajeitadamente guarnecido com uma madeira escura, com armários, camas, cadeiras e bancos dispostos nele. As camas estavam, imaginei, todas vazias, bem como o próprio aposento sem ninguém além de mim. Eu, depois de olhar ao meu redor por algum tempo e admirar especialmente um castiçal de ferro com dois ramos, que iria conhecer novamente, arrastei-me de uma das camas para alcançar a janela. Mas quando entrei debaixo da cama, ouvi alguém chorando e, olhando para cima, enquanto ainda estava ajoelhada, vi você – seguramente você – como eu a vejo agora: uma bela jovem, com cabelos dourados, grandes olhos azuis e lábios – seus lábios – como a vejo aqui. Sua aparência conquistou-me. Eu subi na cama e pus meus braços sobre você e eu acho que nós duas adormecemos. Fui despertada por um grito. Você estava sentada gritando. Eu fiquei assustada e escorreguei para baixo no assoalho e, pareceu-me, perdi a consciência por um momento. Quando voltei a mim, estava novamente em meu berçário, em casa. Seu rosto eu nunca esqueci desde então. Eu não poderia ser induzida a erro por mera semelhança. Você é a jovem que me vi, então. Foi então a minha vez de narrar a minha visão correspondente, o que fiz, para o indisfarçável admiração de minha nova conhecida.

— Eu não sei porque tivemos tanto medo uma da outra — disse ela, sorrindo novamente. — Se você fosse menos bonita, acho que deveria ter muito mais medo de você, mas sendo como você é, e você e eu somos tão jovens, sinto apenas que a conheci doze anos atrás e tenho já direito a sua intimidade. Durante todos os acontecimentos, parece que estávamos predestinadas, desde nossa tenra infância, a sermos amigas. Gostaria de saber se você se sente tão estranhamente atraída por mim como eu por você. Eu nunca tive uma amiga. Encontrarei uma agora? — suspirou e seus olhos perfeitos fixaram-se apaixonadamente em mim. Agora, a verdade é que eu me senti bastante desconfortável em relação à bela estranha.

Eu me senti, como ela havia dito, atraída por ela, mas também havia algo de repulsa. Nesse sentimento ambíguo, porém, o sentimento de atração imensamente prevaleceu. Ela me interessou e ganhou-me. Era tão bonita e tão indescritivelmente atraente. Eu percebi, então, algo de langor e exaustão acentuar-se nela e apressei-me em desejar-lhe boa noite.

— O médico acha — acrescentei — que deve ficar uma serva com você esta noite. Uma das nossas está esperando e você verá que se trata de uma criatura muito útil e pacata.
— Que gentileza a sua, mas eu não poderia dormir, eu nunca conseguiria com uma pessoa no quarto. Eu não preciso de qualquer ajuda e, devo confessar a minha fraqueza, sou assombrada por um terror de ladrões. Nossa casa foi assaltada uma vez e dois empregados assassinados. Assim, eu sempre tranco minha porta. Tornou-se um hábito e você parece tão amável que sei que vai me perdoar. Vejo que há uma chave na fechadura. Ela me tomou bem próximo em seus lindos braços por um momento e sussurrou ao
meu ouvido:
— Boa noite, querida, é muito difícil despedir-me de você, mas boa noite. Amanhã, mas não mais cedo, irei vê-la novamente. Ela despencou de volta no travesseiro com um suspiro e seus olhos perfeitos me seguiram com um um olhar apaixonado e melancólico. Ela murmurou novamente:
— Boa noite, querida amiga!

Os jovens gostam e até mesmo amam por impulso. Fiquei lisonjeada pela evidente, porém, ainda imerecida, afetuosidade que ela me demonstrou. Gostei da confiança com que me recebeu de imediato. Ela estava determinada que deveríamos ser amigas muito próximas. O dia seguinte chegou e nós nos encontramos novamente. Fiquei encantada com minha companheira em muitos aspectos. Sua aparência nada perdeu à luz do dia. Ela era certamente a mais bela criatura que eu já tinha visto e a desagradável lembrança do rosto, apresentado em meu antigo sonho, tinha perdido o efeito do primeiro e inesperado reconhecimento. Ela confessou que tinha experimentado um choque semelhante ao ver-me e exatamente a mesma antipatia desvelada que se misturava com a minha admiração por ela. Nós rimos juntas agora sobre de nossos horrores momentâneos.

IV- Seus Modos - Um passeio

Eu disse que fiquei encantada com ela na maior parte dos detalhes. Houve alguns que não me agradaram muito. Ela estava acima da altura média das mulheres. Vou começar por descrevê-la. Era magra e maravilhosamente graciosa. Exceto por seus movimentos serem langorosos – muito langorosos – na verdade, nada havia em sua aparência que indicasse uma inválida. Sua aparência era rica e brilhante; suas faces eram pequenas e maravilhosamente formadas; seus olhos grandes, escuros e brilhante; o cabelo dela era maravilhoso, nunca vi fios tão magnificamente delgados e longos, quando eles caiam sobre seus ombros. Frequentemente colocava minhas mãos sob eles, sorrindo com admiração pelo seu peso. Eram requintadamente finos e macios, de uma cor marrom escuro muito rica, com algo de ouro. Eu gostava de soltá-los, fazendo cambalhotas com seu próprio peso, enquanto, no quarto dela, ela se sentava em sua cadeira, falando com sua voz doce e baixa. Eu costumava separá-los, trançá-los, espalhá-los e brincar com eles. Céus! Se eu soubesse de tudo!

Eu disse que havia detalhes que não me agradavam. Já lhe disse que ela ganhou-me a confiança na primeira noite em que a vi, mas achei que ela mantinha, com relação a ela, sua mãe, sua história, tudo na verdade ligado à vida dela, planos e pessoas, uma incessante reserva. Atrevo-me a dizer que eu não estava sendo razoável, talvez eu estivesse errada. Ouso dizer que eu deveria ter respeitado a solene injunção estabelecida sobre meu pai pela majestosa dama de veludo preto. Mas curiosidade é uma paixão inquieta e sem escrúpulos e uma menina não pode suportar, com paciência, que ela seja frustrada por uma outra pessoa. Que mal haveria em alguém me dizer o que tão ardentemente desejava saber? Ela não tinha confiança na minha honra ou bom senso? Por que ela não acreditou em mim quando lhe assegurei, de forma solene, que não iria divulgar uma sílaba do que ela me dissesse, a qualquer mortal vivo. Havia uma frieza, pareceu-me, além de sua vida, na recusa de seu persistente sorriso melancólico em dar-me o menor raio de luz. Não posso dizer que discuti sobre esse ponto, porque ela não aceitaria qualquer discussão. Foi, naturalmente, muito injusto da minha parte pressioná-la, muito mal-educado, mas eu realmente não poderia ajudar e poderia muito bem tê-la deixado quieta. O que ela me disse resultou, em meu julgamento exorbitante, em nada. Tudo pode ser resumido em três vagas revelações.

Primeiro - O nome dela era Carmilla.

Segundo - A família dela era muito antiga e nobre.

Terceiro - Sua casa ficava na direção do oeste.

Ela não me disse o nome de sua família, nem falou-me de seu brasão de armas, nem o nome de sua propriedade, nem mesmo o do local em que viviam. Você não está supondo que eu a tenha atormentado incessantemente sobre esses temas. Vi oportunidades que tanto insinuaram quanto encorajaram meus questionamentos. Uma ou duas vezes, na verdade, eu a abordei mais diretamente. Mas não importava qual fosse a minha tática, o fracasso absoluto foi invariavelmente o resultado. Censura e carinho foram todas perdidas com ela. Mas, devo acrescentar isso, que sua fuga era conduzida com tão linda melancolia e súplica, com tantas, e mesmo apaixonadas declarações do quanto gostava de mim e, creia em minha honra, com tantas promessas de que eu iria saber, finalmente, de tudo, que eu não poderia encontrar em meu coração lugar para me sentir ofendida por ela. Ela costumava colocar seu lindo braço ao redor de meu pescoço, atrair-me para si, colando nossas faces, murmurando com seus lábios junto de minha orelha:

— Querida, seu pequeno coração está ferido. Não me ache cruel porque obedeço à lei irresistível da minha força e fraqueza. Se o seu coração está ferido, querida, meu coração selvagem sangra com o seu. No arrebatamento de minha enorme humilhação eu vivo em sua vida cálida, e você deve morrer – morrer, docemente morrer – na minha. E não posso ajudá-la. Como eu me aproximo de você, você, por sua vez, irá aproximar-se de outros e aprender o arrebatamento dessa crueldade que ainda é o amor. Assim, por enquanto, não procure saber mais de mim e dos meus, mas confie em mim com todo o seu espírito amoroso.

E quando ela  falou isso, ela me apertou mais forte em seu trêmulo abraço e seus lábios, em suaves beijos, suavemente arderam em minha face. Sua perturbação e sua linguagem foram ininteligíveis para mim. A partir desses tolos abraços, que não eram muito frequentes, devo admitir, eu quis me libertar, mas minhas forças pareciam falhar. Seus murmúrios soavam como uma canção de ninar em meu ouvido e amorteciam minha resistência em um transe, a partir do qual eu só parecia recuperar-me, quando ela retirava seus braços. Com essa misteriosa atitude eu não gostava dela. Experimentei uma estranha e tumultuada agitação que foi prazerosa, às vezes, misturada com um vago sentimento de medo e repugnância. Eu não tive pensamentos distintos sobre ela, enquanto durava tais cenas, mas eu estava consciente de um amor que crescia em adoração e também em repúdio. Isso é paradoxal, eu sei, mas não posso fazer qualquer outra tentativa de explicar o sentimento.

Eu agora escrevo, após um intervalo de mais de dez anos, com mão trêmula, com uma confusa e horrível recordação de certos acontecimentos e situações, no calvário pelo qual eu estava passando inconscientemente, apesar de uma recordação viva e muito clara dos principais acontecimentos de minha história. Mas, suponho, em todas as vidas, há certas cenas emocionais, aqueles em que as nossas paixões foram mais selvagem e terrivelmente despertadas, que são de todas as outras as mais vaga e palidamente lembradas. Às vezes, após uma hora de apatia, a minha estranha e bela companheira tomava a minha mão e segurava-a com uma carinhosa pressão, renovada seguidamente, corando suavemente, encarando-me com olhos langorosos e ardentes, respirando tão rápido que seu vestido erguia-se e abaixava-se com a tumultuosa respiração. Foi como o ardor de um amante, que me embaraçou. Foi odioso e ainda assim, dominador. Com os olhos sedutores, ela atraia-me para ela e seus lábios ardentes passeavam ao longo de meu rosto em beijos. Ela sussurrava, quase em soluços:

— Você é minha, você será minha, você e eu somos uma para sempre. Então ela se jogava de volta em sua cadeira, com suas pequenas mãos sobre os olhos, deixando-me trêmula.
— Será que estamos ligadas? — eu costumava perguntar. — O que se pode dizer de tudo isso? Lembro-lhe, talvez, alguém a quem você ama, mas não deveria, eu odeio isso, eu não conheço você. Não conheço a mim mesma quando você me olha e fala assim. Ela costumava suspirar diante de minha paixão e depois afastar-se e largar minha mão. A respeito dessas tão extraordinárias manifestações eu me esforcei em vão para formar qualquer teoria satisfatória. Eu não podia interpretá-las como fingimento ou truque. Foi inegavelmente a momentânea fuga do instinto reprimido e da emoção. Era ela, apesar de sua mãe voluntariamente negar, sujeita a breves visitas da insanidade ou havia ali um disfarce e um romance? Eu tinha lido, em um velho livro de histórias, alguma coisa parecida. Poderia ser que um jovem amante tivesse encontrado o caminho da minha casa e tentado prosseguir em sua conquista disfarçadamente, com a ajuda de uma velha e esperta aventureira. Mas havia muitas coisas contra essa hipótese altamente interessante para a minha vaidade.

Eu não podia me vangloriar das mínimas atenções que a galanteria masculina costuma oferecer. Entre esses momentos apaixonados houve longos intervalos de convivência rotineira, de alegria, de introspectiva melancolia, durante o quais detectava seus olhos tão cheios de ardente melancolia seguindo-me e muitas vezes eu parecia ser nada para ela. Salvo nesses breves períodos de excitação misteriosa, seus modos eram de menina e havia sempre um langor envolvendo-a, absolutamente incompatível com um corpo masculino em pleno vigor. Em alguns aspectos seus hábitos eram estranhos. Talvez não tão singulares, na opinião de uma mulher da cidade como você, tal qual pareceria para nós, pessoas rústicas. Ela costumava descer muito tarde, geralmente nunca antes de uma hora, em seguida tomava uma xícara de chocolate, mas nada comia. Então saíamos para uma caminhada, que era um mero passeio, e ela parecia, quase que imediatamente, esgotada. Ou retornávamos para o schloss ou sentávamos em um dos bancos que haviam sido colocados aqui e ali, entre as árvores. Essa era uma prostração física com que sua mente não simpatiza. Ela era sempre uma conversadora animada e muito inteligente.

Ela fazia alusão às vezes, por um momento, a sua própria casa, ou mencionava uma aventura ou situação, uma recordação antiga, o que indicava ser uma pessoa de estranhos costumes. Descreveu costumes dos quais nada sabíamos. Eu deduzi, a partir dessas pistas inesperadas, que seu país era muito mais distante do que eu inicialmente imaginara. Quando nos sentamos assim, um sábado à tarde sob as árvores, um funeral passou por nós. Foi o de uma bonita rapariga, a quem eu tinha visto muitas vezes, a filha de um dos guardas da floresta. O pobre homem caminhava atrás do caixão de sua querida. Era sua única filha e ele parecia muito inconsolável. Camponeses, caminhando dois a dois, vinham atrás, cantando um hino fúnebre. Eu me ergui para demonstrar meu respeito enquanto passavam e uni-me ao canto que eles muito suavemente cantavam. Minha companheira sacudiu-me de um modo um tanto grosseiro e eu me virei surpreendida. Ela disse bruscamente:

— Você não percebe quão contraditório é isso?
— Acho que é muito terno, pelo contrário — respondi, apoquentada com a interrupção e muito desconfortável, porque as pessoas que compunham a pequena procissão deviam ter observado a reprovação que eu estava recebendo. Eu reiniciei o canto, pois, instantaneamente, e fui novamente interrompida.
— Você fura meus ouvidos — disse Carmilla, quase raivosamente, cobrindo as orelhas com os minúsculos dedos. — Além disso, como você pode achar que a sua religião e a minha são as mesmas? Suas cerimônias ferem-me e eu odeio funerais. Que barulho! Por que você deve morrer – todos têm de morrer e todos ficam felizes quando o fazem. Vamos embora.
— Meu pai foi com o padre para o adro. Eu pensei que você soubesse que ela seria enterrada hoje.
— Ela? Eu não preocupo minha cabeça com camponeses. Não sei quem ela é — respondeu Carmilla, com um relampejar de seus lindos olhos.
— Ela é a pobre menina que imaginou ter visto um fantasma há quinze dias e agonizou desde então, até ontem, quando expirou.
— Nada me fale de fantasmas. Não vou dormir esta noite, se o fizer.
— Espero que não haja peste ou febre se aproximando. Tudo isso se parece muito como ela — eu continuei. — A jovem esposa do guardador de porcos morreu apenas uma semana atrás. Ela imaginou que algo a agarrou pela garganta, enquanto estava em sua cama, e quase a estrangulou. Papai diz que tais horríveis fantasias se fazem acompanhar de algumas formas de febre. Ela estava muito bem no dia anterior. Ela definhou em seguida e morreu em menos de uma semana.

— Bem, seu funeral já se foi, espero, junto com seu hino. Nossos ouvidos não devem ser torturados com a discórdia e o jargão. Pôs-me nervosa. Sente-se aqui, ao meu lado. Sente perto, segure minha mão, aperte forte, forte e mais forte. Recuamos um pouco e chegamos a um outro banco. Ela se sentou. Seu rosto sofreu uma mudança que me assustou e mesmo aterrorizou por um momento. Escureceu e se tornou horrivelmente pálido; os dentes e as mãos crisparam-se. Ela franziu as sobrancelhas e comprimiu seus lábios, enquanto baixava os olhos para o solo a seus pés, tremendo toda continuamente com um estremecimento irreprimível como o de uma febre. Todas as suas energias pareciam tensas para reprimir um ataque, com o que ela foi então ficando sem respiração. Em breve um grito fraco e convulsivo de sofrimento partiu dela, e, progressivamente, a histeria foi se acalmando.

— Veja! Isso vem de hinos que estrangulam as pessoas! — disse ela, finalmente. — Abraça-me, segure-me ainda. Está passando.

E assim gradualmente ocorreu e, talvez para dissipar a triste impressão que o espetáculo havia deixado sobre mim, ela se tornou extraordinariamente animada e tagarela. Assim chegamos em casa. Essa foi a primeira vez que eu a vi exibir qualquer definível sintomas dessa delicadeza de saúde de que a mãe dela havia falado. Foi a primeira vez, também, que a vi expor seu temperamento. Isso passou como uma nuvem de verão e nunca além de uma outra vez, testemunhei sua participação em um transitório sinal de raiva. Vou dizer-lhe como é que aconteceu. Ela e eu estavámos olhando por uma das longas janelas da sala de estar, quando surgiu, além da ponte levadiça, uma figura de um vagabundo que eu conhecia muito bem. Ele geralmente costumava visitar o schloss duas vezes por ano.

Era um corcunda, com a figura acentuadamente magra que geralmente acompanha a deformidade. Usava uma barba preta pontuda e ria de orelha a orelha, mostrando seus dentes brancos. Vestia-se de amarelo-claro, preto e escarlate e cruzado com mais correias e cintos do que eu poderia contar, a partir dos quais pendiam todos os tipos de coisas. Atrás, ele transportava uma lanterna mágica e duas caixas, que eu conhecia bem, em uma das quais havia uma salamandra e na outra, uma mandrágora. Esses monstros costumavam fazer rir meu pai. Eram compostas de partes de macacos, papagaios, esquilos, peixes e ouriços, secos e cosidos, unidos com maravilhosa ordem e surpreendente efeito. Tinha um violino, uma caixa de aparelhos mágicos, um par de adagas e máscaras presas a seu cinto, várias outras caixas misteriosas suspensas ao seu redor e uma lança negra com ferragens de cobre em sua mão. Seu companheiro era um rude cachorro magrelo, que o seguia ao calcanhar, mas parou, de repente, inquieto na ponte levadiça e logo começou a uivar tristemente. Nesse meio tempo, o saltimbanco, em pé no meio do pátio, levantou seu chapéu grotesco e fez-nos uma muito cerimoniosa saudação, arrematando seu cumprimento muito rapidamente em execrável francês e alemão não menos execrável. Em seguida, sacando seu violino, começou a raspar uma animada ária que cantou com uma alegre desarmonia, dançando de uma forma ridícula e cheia de energia que me fez rir, apesar do cão barulhento.

Então ele avançou para a janela com muitos sorrisos e saudações, seu chapéu na mão esquerda e seu violino debaixo do braço. Com uma fluência que nunca tomava fôlego, ele balbuciou um longo enunciado de todas as suas realizações, os recursos das várias artes que ele colocava a nosso serviço e as curiosidades e entretenimento que trazia em seu poder, a nosso convite, para exibir.

— Será que suas senhorias teriam o prazer de comprar um amuleto contra o oupire, o que está rondando como o lobo, ouvi, através desses bosques — disse ele, largando o chapéu sobre o pavimento. — Está morrendo gente a torto e a direita e aqui está um encanto que nunca falha. Basta pregá-lo no travesseiro e você pode rir na cara dele. Estes encantos consistiam de folhas de velino oblongas, com cifras cabalística e diagramas neles.

Carmilla imediatamente comprou um e eu também. Ele estava olhando para cima e nos debruçamos sorridentes sobre ele, divertidas, pelo menos posso responder por mim. Seus olhos negros e penetrantes, assim que nos olhou nas faces, pareceu detectar algo que acendeu por um momento sua curiosidade, Num instante ele desenrolou um estojo de couro, cheio de todos os tipos de pequenos instrumentos de aço.
— Veja aqui, minha senhora — disse ele, mostrando-o, e dirigindo-se a mim, — eu professo, entre outras coisas menos úteis, a arte da odontologia. A praga tomou o cão! — interpolou. — Silêncio, besta! Ele uiva tanto que seus suas senhorias dificilmente podem ouvir uma palavra. Sua nobre amiga, a moça a sua direita, tem o mais aguçado dente, longo e fino, apontado como um furador, como uma agulha, ha, ha! Com minha aguçada e nítida visão, quando olhei para cima, eu o vi nitidamente. Agora se acontecer de estar ferindo a menina, e acho que está, aqui estou eu, aqui estão minha lima, minha punção e meu alicate. Vou deixá-lo redondo e rombo, se a sua senhoria permitir. Não mais o dente de um peixe, mas o de uma moça bonita como ela é. Ei? Está a moça zangada? Terei sido demasiado audacioso? Terei eu a ofendido?

A jovem, na verdade, parecia muito irritada, quando se retirou da janela.

— Como se atreve esse saltimbanco a nos insultar dessa forma? Onde está seu pai? Vou pedir justiça dele. Meu pai teria amarrado o desgraçado à bomba d’água, açoitado com um látego e o queimado até os ossos com o ferro de marcar gado! Ela se afastou da janela um passo ou dois e sentou-se, sem ter perdido de vista seu ofensor, quando a sua ira abrandou-se repentinamente da mesma forma como surgira e ela recuperou gradualmente a seu tom habitual, parecendo ter esquecido o pequeno corcunda e suas bobagens.

Meu pai estava triste naquela noite. Ao chegar, ele nos disse que tinha havido um outro caso muito semelhante aos outros dois acidentes fatais que haviam ocorrido recentemente. A irmã de um jovem camponês em sua propriedade, apenas a uma milha de distância, estava muito doente. Tinha sido atacada, como ela mesma descreveu, quase da mesma maneira e agora estava lenta mas constantemente sucumbindo.

— Tudo isso — disse meu pai — é estritamente relativo a causas naturais. Essa pobre gente contamina uma à outra com suas superstições e, por isso, repetem em imaginação as imagens de terror que têm afetado seus vizinhos.
— Mas essa mesma circunstância assusta qualquer um horrivelmente — disse Carmilla.
— Como assim? — perguntou meu pai.
— Fico tão assustada só de imaginar ver essas coisas. Penso que seria tão ruim quanto a realidade.
— Estamos nas mãos de Deus: nada pode acontecer sem a Sua permissão e vai acabar tudo bem para aqueles que O amam. Ele é nosso fiel criador. Ele nos fez a todos e vai cuidar de nós.
— Criador! Natureza! — disse a moça, em resposta ao meu gentil pai. — E esta doença, que invade o país, é natural. Natureza! Todas as coisas vierem da Natureza, não vieram? Todas as coisas no céu, na terra e debaixo da terra agem e vivem como ordena a Natureza? Acho que sim.
— O médico disse que viria aqui hoje — falou meu pai, depois de um silêncio. — Quero saber o que ele pensa sobre isso e aquilo que acha melhor que façamos.
— Os médicos nunca me fizeram algum bem — disse Carmilla.
— Então, você já esteve doente? — perguntei.
— Mais do que você jamais esteve — ela respondeu.
— Há muito tempo?
— Sim, há um longo tempo. Eu sofri muito com essa doença, mas esqueci tudo, menos minha dor e fraqueza e elas não são assim tão ruins como as sofridas em outras doenças.
— Você era muito jovem, então?
— Ouso pedir, não vamos mais falar disso. Você não feriria uma amiga, não?

Languidamente ela olhou em meus olhos e passou amorosamente seu braço ao redor de minha cintura, levando-me para fora da sala. Meu pai foi se ocupar de alguns papéis perto da janela.

— Porque seu pai queria nos assustar? — disse a linda jovem com um suspiro e um leve estremecimento.
— Ele não queria, querida Carmilla, é mais coisa de sua mente.
— Você está com medo, minha querida? —
— Eu deveria estar muito mais se eu imaginasse haver qualquer perigo real de ser atacada como as pobres pessoas foram.
— Está com medo de morrer?
— Sim, todos têm.
— Mas, para morrer como as amantes devem morrer, morrer juntas para que possam viver juntas.

As meninas são lagartas, enquanto vivem no mundo, para serem, finalmente, borboletas quando chega o verão. Mas, enquanto isso, há larvas e larvas, cada uma com suas peculiares inclinações, necessidades e estrutura. Assim diz Monsieur Buffon, em seu grande livro, na sala ao lado. Mais tarde, no mesmo dia, o médico veio e fechou-se com papai durante algum tempo. Ele era um homem hábil, de sessenta anos ou mais, usava um guarda-pó e escaneava seu rosto pálido tão suave como uma abóbora. Ele e pai emergiram da sala e ouvi papai rir e dizer, enquanto saíam:

— Bem, eu pergunto a um homem sábio como você: o que você diria de hipogrifos e dragões?

O médico estava sorrindo e respondeu, chacoalhando a cabeça.

— Apesar disso, vida e morte são estados misteriosos e nós sabemos pouco sobre os conteúdos de ambas.

E assim eles foram caminhando e eu não os ouvi mais. Dessa forma, não sabia se o médico havia levantado uma questão, mas acho que suponho isso agora.

V - Maravilhosa Semelhança

Nessa noite chegou lá, vindo de Graz, o filho do restaurador de telas, de cara séria e escura, com um cavalo e uma carroça carregada com dois grandes caixotes, com muitos quadros em cada um. Era uma viagem de dez léguas e sempre que um mensageiro chegava ao schloss, vindo de nossa pequena capital de Graz, costumávamos cercá-lo no hall para ouvir as novidades.

Essa chegada causou, em nossa isolada moradia, muita sensação. Os caixotes permaneceram na sala e o mensageiro foi atendido pelos servos até que tivesse comido sua ceia. Em seguida, com os auxiliares, armado com martelo, entalhadeira e chave de fenda, ele nos encontrou no hall, onde tínhamos nos reunido para testemunhar a abertura das caixas. Carmilla sentou-se, olhando desinteressadamente ao redor, enquanto uma após outra as telas antigas, quase todas retratos, que tinham passado por um processo de restauração, eram trazidas à luz. Minha mãe era de uma velha família húngara e a maioria dessas imagens, que estavam prestes a ser devolvidas a seus lugares, tinham chegado até nós através dela. Meu pai tinha uma lista na mão, a partir do qual ele lia, enquanto o artista retirava os números correspondentes. Não sei se as imagens eram muito boas, mas eram, sem dúvida, muito antigas, algumas delas muito curiosas também. Tinham, na sua maior parte, o mérito de serem agora vistas por mim, posso afirmar, pela primeira vez. A fumaça e a poeira do tempo as tinham apagado de minha lembrança.

— Há uma foto que eu não vi ainda — disse meu pai. — Em um canto, no topo da mesma, está o nome, mais ou menos eu podia ler Marcia Karnstein e a data 1698. Estou curioso para ver como ficou. —

Eu me lembrava dela. Era uma pequena imagem, cerca de um pé e meio de altura, quase quadrada, sem uma moldura, mas estava tão escurecida pelo tempo que eu não podia distinguila. O artista a restaurara e a exibia com evidente orgulho. Era muito bonita, e surpreendente. Parecia viva. Era a efígie de Carmilla!

— Carmilla, querida, aqui está um verdadeiro milagre. Aqui está você, viva, sorridente, pronta para falar, nesta foto. Não é bonita, papai? E veja, o mesmo pequeno sinal de nascença em sua garganta.

Meu pai riu e disse:

— Certamente é uma maravilhosa semelhança! — disse, mas desviou o olhar para longe e, para minha surpresa, pois parecia pouco surpreso com ela, passou a conversar com o restaurador, que também era um tipo de artista, discursando com inteligência sobre os retratos e outras obras que sua arte tinha acabado de trazer à luz e cor, enquanto eu permanecia mais e mais perdida em indagações, quanto mais olhava para o retrato.

— Você me deixa pendurar este retrato em meu quarto, papai? — perguntei.
— Certamente, querida — disse ele, sorrindo. — Estou muito feliz que você o deseje. É mais bonito ainda do que eu pensava que fosse. A jovem convidada não tomava conhecimento desse belo discurso, não parecia ouvir. Estava inclinada para trás em seu assento, seus olhos perfeitos sob seus longos cílios fixavam-se em mim em contemplação e ela sorriu numa espécie de arrebatamento.

— E agora você pode ler claramente o nome que está escrito no canto. Não é Márcia. Parece feito em ouro. O nome é Mircalla, Condessa Karnstein. Isso é um pequeno ornato, acima e abaixo, A. D. 1698. Eu sou descendente dos Karnsteins, isto é, mamãe era. Ah! — disse a moça, languidamente — assim sou eu, imagino, de uma descendência muita longa, muito antiga. Existem Karnsteins vivos agora?

— Nada que use o nome, creio eu. A família foi arruinadas, creio que, em algumas guerras civis, há muito tempo, mas as ruínas do castelo estão apenas cerca de três milhas de distância.
— Que interessante! — disse ela, languidamente. — Mas veja que belo luar! — Ela relanceou os olhos através da porta da sala, que ficara entreaberta. — Acho que vou dar um pequeno passeio em volta do pátio e olhar para baixo a estrada e o rio.

— É como a noite em que você veio até nós — disse eu. Ela suspirou, sorrindo. Ergueu-se e cada uma com o braço na cintura da outra, saímos para o pavimento. Em silêncio, ela caminhou lentamente até a ponte levadiça, onde a bela paisagem abria-se diante de nós.

— E então você estava pensando na noite em que vim parar aqui? — ela quase sussurrou. — Você está feliz por eu ter vindo?
— Encantada, caro Carmilla! — respondi.
— E você pediu para pendurar em seu quarto a imagem que julga parecida comigo — murmurou com um suspiro, enquanto estreitava minha cintura e deixava sua linda cabeça pousar em meu ombro.
— Como você é romântica, Carmilla! — eu disse. — Quando você me contar sua história, ela será composta principalmente de algum grande romance. Ela beijou-me silenciosamente.
— Estou certa, Carmilla, você está apaixonada. Existe, neste momento, um assunto de coração acontecendo.
— Não estou apaixonada por ninguém e nunca estarei — sussurrou — a menos que seja por você. —
Que linda ficou olhando o luar!

Tímido e estranho foi o olhar com que ela rapidamente escondeu seu rosto em meu pescoço e cabelos, com tumultuosos suspiros que parecia quase soluçar. Apertou-me a mão com mão trêmula. Sua face suave ardia contra a minha.
— Querida, querida — ela murmurou. — Eu vivo em você e você poderia morrer por mim, eu a amo tanto.

Afastei-me dela. Ela me olhava com os olhos de onde todo o fogo e todo sentido haviam sumido e seu
rosto tornou-se pálido e apático.

— Existe um calafrio no ar, querida? — ela disse, sonolenta. — Eu quase arrepiei. Estive sonhando? Vamos entrar.Venha, venha, venha logo!
— Você parece doente, Carmilla, um pouco fraca. Você certamente deve tomar um pouco de vinho — eu disse.
— Sim. Eu vou. Estou melhor agora. Vou estar muito bem em alguns minutos. Sim, dême um pouco de vinho — respondeu Carmilla, enquanto nos aproximávamos da porta.
— Vamos olhar novamente por um momento. É a última vez, talvez, que verei o luar com você.
— Como você se sente agora, querida Carmilla? Você está realmente melhor? — perguntei.

Eu estava começando a ficar alarmada, com medo de que ela pudesse ter sido contagiada pela estranha epidemia que diziam ter invadido a região ao nosso redor.

— Papai ficaria desmedidamente aflito — acrescentei — se ele achar que você está mesmo ligeiramente adoecida, sem imediatamente nos deixar saber. Temos um hábil médico próximo de nós, o médico que esteve hoje com papai.

— Tenho certeza que ele é. Sei quão gentis vocês todos são, mas, querida criança, estou muito bem de novo. Não há nada errado comigo além de um pouco de fraqueza. As pessoas dizem que eu sou fráfil, que sou incapaz de esforços. Mal posso caminhar tão longe como uma criança de três anos e mesmo agora e então, a pouca força que tenho vacila e fico como acabou de me ver. Mas depois disso, facilmente me recomponho novamente. Em um momento estou perfeitamente bem. Veja como me recuperei!

Então, na verdade, havia se recuperado e ela e eu conversamos muito. Ela estava muito animada e o resto da noite decorreu sem qualquer repetição do que eu chamei de suas obsessões. Quero dizer sua fala maluca e aparência que embaraçavam e ainda me assustavam. Mas ocorreu naquela noite um evento que deu a minhas deduções um novo rumo e pareceu transformar até a natureza langorosa de Carmilla em energia momentânea.

VI - Agonia Muito Estranha

Quando chegamos à sala de estar e sentamo-nos para nosso café e chocolate, apesar de Carmilla nada tomar, ela parecia muito ensimesmada novamente. Madame e Mademoiselle De Lafontaine juntaram-se a nós e formamos um pequeno grupo de cartas, até que papai veio se juntar a nós para o que ele chamava de seu bule de chá. Quando o jogo terminou, sentou-se ao lado Carmilla no sofá e perguntou a ela, um pouco ansioso, se ela havia tido notícias de sua mãe desde a sua chegada. Ela respondeu:

— Não.
Ele então perguntou se ela sabia onde uma carta poderia chegar até ela no momento.
— Não posso dizer — respondeu ambiguamente, — mas tenho de pensar em sair daqui. Vocês já têm sido muito hospitaleiros e muito amáveis comigo. Tenho-lhes dado uma infinidade de problemas e gostaria de tomar uma carruagem amanhã e sair no encalço dela. Sei onde encontrá-la no fim das contas, embora eu ainda não ouse dizer-lhes.
— Mas você não deve sonhar com tal coisa — exclamou meu pai, para meu grande alívio. — Nós não podemos nos dar ao luxo de perdê-la dessa forma e não vou permitir que nos deixe, exceto sob os cuidados de sua mãe, que tão bondosamente consentiu que você ficasse conosco até que ela pudesse voltar. Ficarei muito feliz se souber que você ouviu isso dela.

Esta noite, porém, as notícias do avanço da misteriosa doença que invadiu nossa vizinhança tornaram-se ainda mais alarmantes e, minha bela hóspede, sinto a responsabilidade, desassistido sem a presença de sua mãe. Mas darei o melhor de mim e uma coisa é certa: você não deve pensar em nos deixar sem a distinta autorização dela para isso. Sofreremos muito em separar-nos de você para consentir com isso facilmente.

— Obrigada, senhor, mil vezes por sua hospitalidade — ela respondeu, sorrindo timidamente.
— Vocês têm sido muito gentis comigo, eu raramente fui tão feliz em toda a minha vida antes, como em seu belo castelo, sob seus cuidados e na companhia de sua querida filha.

Então ele galantemente, na sua maneira antiga, beijou a mão dela, sorridente e satisfeito com seu pequeno discurso.

Acompanhei Carmilla, como de costume, até seu quarto e conversei com ela enquanto ela se preparava para dormir.

— Você acha — eu disse em seguida — que nunca vai confiar plenamente em mim?
Ela virou sorrindo, mas não deu qualquer resposta, apenas continuou a sorrir para mim.
— Você não vai responder? — disse eu. — Você não pode responder amigavelmente. Eu não devia ter perguntado.
— Fez muito bem em me perguntar isso, ou qualquer outra coisa. Você não sabe como é querida por mim ou não pode imaginar nenhum segredo grande demais para saber. Mas estou sob juramento, nenhuma freira faria um voto tão terrível e não ouso contar minha história ainda, até mesmo para você. Está muito perto o tempo quando deverá saber de tudo. Você acha que sou cruel, muito egoísta, mas o amor é sempre egoísta, quanto mais ardente, mais egoísta. O quanto sou ciumenta você não pode imaginar. Você deve vir comigo, me amar, à morte ou então me odiar e ainda vir comigo. E odiar-me na morte e depois. Não existe a palavra indiferença na minha apática natureza.
— Agora, Carmilla, vai falar com seu seu extravagante disparate novamente? — eu disse apressadamente.
— Não eu, pequena tola como sou e cheia de caprichos e desejos. Para seu bem vou falar como um sábio. Já teve uma bola? Não? Como é que a fazia rolar? Como é? Como deve ter sido encantador. Eu quase esqueci, foi há anos. Eu ri.
— Você não é tão velha. Não pode já ter esquecido sua primeira bola.
— Lembro-me de tudo com certo esforço. Eu vejo tudo, como mergulhadores devem ver o que está passando acima deles, através de uma névoa densa, ondulante, mas transparente. Ocorreu naquela noite o que tem confundido as imagens e feito desmaiar suas cores. Fui quase assassinada em minha cama, ferida aqui — ela tocou o peito — e nunca mais fui a mesma desde então.
— Esteve perto de morrer?
— Sim, muito, um cruel amor, estranho amor, que teria tomado a minha vida. Amor tem seus sacrifícios. Nenhum sacrifício sem sangue. Vamos dormir agora, eu me sinto tão preguiçosa. Como poderia levantar-me agora e trancar minha porta?

Ela estava deitada com suas minúsculas mãos enterradas em seu rico cabelo ondulado sob sua face, sua cabecinha sob o travesseiro e seus olhos brilhantes me seguiam para onde eu me movesse, com uma espécie de sorriso tímido que não consegui decifrar. Eu lhe desejei boa-noite e deslizei para fora do quarto com uma sensação desconfortável. Eu sempre me perguntava se a nossa bela hóspede nunca dizia suas orações. Certamente nunca a vi de joelhos. De manhã, ela nunca descia até muito tempo depois que terminávamos nossas orações familiares. À noite, ela nunca deixava a sala de estar para assistir às nossas breves orações da noite no hall. Se não tivesse sido casualmente que surgira, em um de nossas descuidadas conversas, que tinha sido batizada, eu teria duvidado dela ser uma cristã. Religião foi um assunto sobre o qual eu nunca ouvi dela uma só palavra. Se eu conhecesse melhor o mundo, esta particular negligência ou antipatia não teria me surpreendido tanto.

As precauções de pessoas nervosas são contagiantes e as pessoas de um temperamento semelhante com muita certeza, depois de um tempo, imitam-nas.  Eu tinha adotado o hábito de Carmilla de trancar a porta do quarto, tendo em minha mente todas as suas caprichosas precauções sobre invasores da meia-noite e assassinos à espreita. Eu também tinha adotado sua cautela de fazer uma breve busca pelo seu quarto, para satisfazer a si própria de que nenhum assassino oculto ou ladrão estava ali escondido. Tendo tomado essas sábias medidas, fui para minha cama e adormeci. Uma luz queimava em meu quarto. Este era um hábito antigo, desde muito tempo e que nada poderia tentar-me dispensar. Assim protegida eu poderia descansar em paz. Mas sonhos vieram através de paredes de pedra, salas escuras ou na penumbra e pessoas faziam suas saídas e suas entradas como lhes aprouvesse, rindo do porteiro.

Eu tive um sonho nessa noite que foi o início de uma agonia muito estranha. Não posso chamá-lo de um pesadelo, pois eu estava bem consciente de estar dormindo. Mas estava igualmente consciente de estar em meu quarto e deitada na cama precisamente como realmente estava. Eu vi, eu vi ou imaginei, o quarto e os seus móveis, tal como eu tinha visto antes de dormir, exceto que era muito escuro. Vi uma coisa que se deslocava em volta dos pés da cama, que inicialmente não podia distinguir com precisão. Mas logo vi que era um animal preto fuliginoso semelhante a um monstruoso gato. Pareceu-me ter cerca de quatro ou cinco pés de comprimento, plenamente medindo o comprimento do tapete diante da lareira, uma vez que passou por ele e ficou indo e vindo com a ágil e sinistra agitação de uma besta numa gaiola. Eu não podia gritar, embora, como pode supor, estivesse apavorada. Seu ritmo foi crescendo mais rápido. Rapidamente o quarto foi ficando cada vez mais escuro e mais escuro e, finalmente, tão escuro que eu já não podia ver nada, exceto seus olhos. Senti-o saltar levemente sobre a cama. Os dois grandes olhos se aproximaram de meu rosto e, de repente, senti uma dor pungente, como se duas grandes agulhas picassem, uma polegada ou duas distantes uma da outra, profundamente em meu seio. Eu acordei com um grito. O quarto estava iluminado pela vela que ardera lá durante toda a noite e eu vi uma figura feminina de pé aos pés da cama, um pouco na lateral direita. Trajava um vestido preto longo e solto e seus cabelos estavam caídos, cobrindo seus ombros. Um bloco de pedra não poderia estar mais imóvel. Não havia a menor agitação de sua respiração. Enquanto eu a encarava, a figura pareceu ter mudado de lugar e estava agora mais perto da porta, em seguida, junto dela, abriu-a e saiu.

Eu me senti então aliviada e capaz de respirar e mover-me. O meu primeiro pensamento foi que tinha sido Carmilla dando-me um susto e que eu tinha esquecido de trancar minha porta. Apressei-me até ela e a encontrei trancada, como de costume, por dentro. Eu estava com medo de abri-la. Fiquei horrorizada. Eu saltei para minha cama, cobri minha cabeça com as cobertas e fiquei ali mais morta do que viva até de manhã.

VII - Decadência

Seria inútil minha tentativa de dizer-lhe o horror com que, mesmo agora, eu lembro a ocorrência daquela noite. Não foi esse terror passageiro que um sonho deixa para trás. Pareceu-me aprofundar-se com o tempo e ligar-se ao aposento e aos próprios móveis que haviam acompanhado a aparição. Não pude suportar ficar sozinha por um momento nos dias seguintes. Nada disse a papai, por duas razões opostas. Por um lado, pensei que ele ia rir de minha história e eu não podia suportar que aquilo fosse tratado como uma brincadeira. Por outro, pensei que ele poderia imaginar que eu tinha sido atacada pela misteriosa enfermidade que tinha invadido nossa região. Eu, pessoalmente, não tive receio disso e como ele tinha sido quase um inválido por algum tempo, tinha medo de alarmá-lo.

Eu estava suficientemente confortável com minhas bondosas companheiras, Madame Perrodon e a vivaz Mademoiselle Lafontaine. Ambas perceberam que eu estava deprimida e nervosa e, em pormenores, disse-lhes o que havia de tão pesado em meu coração. Mademoiselle riu, mas eu percebi que Madame Perrodon pareceu inquieta.

— A propósito — disse Mademoiselle, rindo. — O enorme limoeiro, atrás da janela do quarto de Carmilla, é assombrado! 
— Disparate! — exclamou Madame, provavelmente julgando o tema bastante inoportuno. — E quem contou essa história, minha cara?
— Martin disse que ele veio duas vezes, quando o antigo portão do pátio estava sendo reparado, antes do nascer do sol, e viu duas vezes a mesma figura feminina andando pela avenida do limoeiro.
— Então, ele certamente viu as vacas de leite nos campos do rio — disse Madame.
— Eu presumo, mas Martin prefere ficar assustado e nunca vi um tolo mais assustado.
— Você não deve dizer uma palavra sobre isso a Carmilla, porque ela vai ver isso da janela do quarto dela — interpus — e ela é, se é possível, mais covarde do que eu. Carmilla desceu bem mais tarde do que era usual naquele dia.
— Eu fiquei tão assustada na noite passada — disse ela, assim que nos encontramos. — Estou certa de que devo ter visto algo terrível se não fosse pelo talismã que comprei do pobre corcunda, a quem tratei com tão duras palavras. Eu tive um sonho com alguma coisa preta rondando minha cama e despertei em completo horror. Pensei, por alguns segundos, ter visto uma figura escura perto da abóboda da lareira, mas enfiei-me debaixo do travesseiro e o momento em que meus dedos tocaram o talismã, a figura desapareceu. Tive certeza de que, se não o tivesse perto de mim, algo terrível teria feito a sua aparição e, talvez, me sufocado como fez a essas pobre pessoas de quem ouvimos falar.

— Bem, ouça-me — comecei e recontei minha aventura, ao fim da qual ela parecia
horrorizada.
— E você tinha o talismã perto de você? — perguntou, seriamente.
— Não, eu o deixei em um vaso de porcelana da sala de estar, mas vou certamente leva-lo comigo esta noite, já que você tem tanta fé nele. Após esse tempo todo, não consigo lhe dizer, ou mesmo entender, como superei meu horror tão eficazmente para dormir sozinha em meu quarto naquela noite. Lembro-me claramente que preguei o talismã em meu travesseiro. Adormeci quase imediatamente e dormi, ainda mais pesado do que era habitual, a noite toda. A noite seguinte noite passei da mesma forma. Meu sono foi deliciosamente profundo e sem sonhos.
Mas acordei com uma sensação de lassidão e melancolia, que, contudo, não excedia um nível que era quase confortável.

— Bem, eu lhe disse isso — falou Carmilla, quando descrevi meu sono tranquilo. — Eu também tive esse delicioso sono na noite passada. Eu preguei o talismã no peito de minha camisola. Ele estava muito longe na noite anterior. Estou absolutamente certa de que era tudo imaginação, exceto os sonhos. Eu costumava pensar que os espíritos maus criavam os sonhos, mas nosso médico disse-me que não é isso. Só uma febre passando ou alguma outra enfermidade como ocorre muitas vezes, ele disse, batendo à porta e, não sendo capazes de entrar, passam com esse alarme.

— E o que você acha que é o talismã? — disse eu.
— Foi fumigado ou imersos em alguma droga e é um antídoto contra a malária — ela respondeu.
— Então, ele atua somente sobre o corpo?
— Certamente. Você não supõe que os espíritos maus ficam assustados com pedaços de fita ou o perfume de uma droga? Não, essas doenças, vagando no ar, começam por tentar os nervos e assim afetar o cérebro. Antes, porém, que elas possam apoderar-se de você, o antídoto as repele. Do que tenho certeza é o que o talismã fez por nós. Não é nada mágico, é simplesmente natural.

Eu poderia ter ficado mais feliz se pudesse ter concordado com Carmilla o bastante, mas eu fiz o meu melhor e a sensação foi aos poucos perdendo sua força. Por algumas noites eu dormi profundamente, mas ainda todas as manhãs eu sentia a mesma lassidão e um langor pesava sobre mim todo o dia. Sentia-me uma pessoa diferente. Uma estranha melancolia foi se infiltrando em mim, uma melancolia que eu não queria
interromper. Obscuros pensamentos de morte começaram a surgir e uma idéia de que eu estava afundando lentamente tomou gentil e, de alguma forma, não indesejável, posse de mim. Se era triste, o estado de espírito que induzia era igualmente doce. Seja lá o que fosse, minha alma submeteu-se a isso. Não vou admitir que fiquei doente, não aceitaria dizer a meu pai ou ter chamado o médico. Carmilla tornou-se mais dedicada a mim do que nunca e seus estranhos paroxismos de langorosa adoração, mais freqüentes. Ela costumava observar-me com ardor crescente à medida que minhas forças e espírito diminuíam. Isso sempre me chocou como um momentâneo reflexo de insanidade.

Sem o saber, eu já estava em um estágio bastante avançado da mais estranha doença que mortal algum jamais sofreu. Havia um inexplicável fascínio em seus sintomas iniciais que mais do que me resignava com o incapacitante efeito daquela fase da doença. Esse fascínio cresceu por algum tempo, até que alcançou um certo ponto quando, gradualmente, um sentimento do horrível mesclou-se a ela, aprofundando-se, como você vai ler, até que descolorisse e pervertesse toda a minha condição de vida. A primeira mudança que experimente foi bastante agradável. Foi muito perto da virada a partir da qual começou minha descida ao inferno. Certas sensações vagas e estranhas visitavam-me em meu sono. A prevalecente era desse agradável, peculiar tremor frio que sentimos no banho, quando nos movemos contra a corrente de um rio. Essa foi logo acompanhada por sonhos que pareciam intermináveis e eram tão vagos que nunca pude rememorar suas paisagens e pessoas ou qualquer parte conexa de suas ações. Mas deixava uma péssima impressão e um sentimento de exaustão, como se eu tivesse passado por um longo período de grande esforço mental e perigo.

Depois de todos esses sonhos, permaneceu em vigília uma lembrança de ter estado em um lugar quase escuro e de ter falado com pessoas que eu não podia ver, sobretudo de uma voz clara, feminina, muito profunda, que falou como se à distância, lentamente e produzindo sempre a mesma sensação de indescritível solenidade e medo. Por vezes, vinha a sensação como se uma mão deslizasse suavemente ao longo de meu rosto e pescoço. Às vezes era como se lábios quentes me beijassem mais e mais demoradamente e mais amorosamente, até que atingissem minha garganta, mas ali a carícia se detinha. Meu coração batia mais rápido, minha respiração subia e descia rapidamente e ofegava plenamente. Um soluço, que cresceu em uma
sensação de estrangulamento, surpreendente e transformou-se numa convulsão horrível, em que meus sentidos me abandonaram e fiquei inconsciente. Fazia, então, três semanas desde o início desse inexplicável estado. Meus sofrimentos tinham, durante a última semana, se refletido em minha aparência. Eu empalidecera, meus olhos estavam dilatados e com olheiras e a apatia que há muito eu tinha sentido começar, manifestava-se em meu semblante. Meu pai perguntou-me muitas vezes se eu estava doente, mas, com uma obstinação que agora parece-me estranha, eu persistia em assegurar-lhe que estava muito bem. Em um certo sentido isso era verdade. Eu não podia me queixar de nenhuma dor ou sofrimento físico. A minha queixa parecia ser da imaginação, ou dos nervos e, horríveis como meus sofrimentos eram, guardei-os, com uma mórbida reserva, junto de mim. Não poderia ser aquela terrível enfermidade que os camponeses denominaram oupire, pois eu já vinha sofrendo por mais de três semanas e eles raramente permaneceram doentes por mais de três dias, quando a morte ponha um fim a suas misérias. Carmilla queixou-se de sonhos e sensações febris, mas não de uma espécie tão alarmante quanto os meus. Digo que os meus foram extremamente alarmantes. Tivesse eu sido capaz de compreender a minha condição, teria invocado ajuda e conselhos de joelhos. O narcótico de uma insuspeita influência agia sobre mim e as minhas percepções ficaram paralisadas. Vou lhe contar agora um sonho que levou imediatamente a uma bizarra descoberta. Uma noite, em vez da voz que estava acostumada a ouvir no escuro, eu ouvi uma, doce e
macia e ao mesmo tempo terrível, que disse:

— Sua mãe a avisa para tomar cuidado com o assassino.

Ao mesmo tempo, uma luz surgiu inesperadamente e eu vi Carmilla, de pé, próxima ao pé de minha cama, na sua camisola branca, banhada, a partir de seu queixo até os pés, em uma grande mancha de sangue. Eu acordei com um grito, possuída pela ideia de que Carmilla estava sendo assassinada. Lembro-me de saltar de minha cama e minha próxima recordação é a de estar de pé, no átrio, clamando por ajuda. Madame e Mademoiselle vieram correndo de seus quartos, alarmadas; uma lâmpada ardia sempre no lobby e, vendo-me, eles compreenderam imediatamente a causa do meu terror. Eu insisti que batêssemos à porta de Carmilla. Nossas batidas ficaram sem resposta. Logo se tornou uma pancadaria e um alvoroço. Nós gritamos o nome dela, mas tudo foi inútil.

Ficamos todas mais assustadas, pois a porta estava trancada. Voltamos depressa, em pânico, para meu quarto. Lá, tocamos a campainha longa e furiosamente. Se o quarto de meu pai fosse naquele lado da casa, nós teríamos imediatamente pedido sua ajuda. Mas, ah!, ele estava muito fora de alcance e procurá-lo envolvia uma excursão para a qual nenhuma de nós tinha coragem. Servos, no entanto, logo vieram correndo, subindo as escadas. Eu vestira meu rôbe e chinelos, enquanto minhas companheiras já estavam similarmente vestidas. Reconhecendo as vozes dos servos no lobby, nós saímos juntas e, tendo renovado infrutiferamente nosso apelo à porta de Carmilla, pedi os homens para forçar a fechadura. Fizeram-no e ficamos, segurando nossas luzes no alto, nos batentes da porta, e assim observamos o quarto.

Nós a chamamos pelo nome, mas não houve mesmo assim qualquer resposta. Olhamos em volta do quarto. Tudo estava intacto. Estava exatamente no mesmo estado em que o tinha deixado quando lhe desejei boa-noite. Mas Carmilla tinha ido embora.

VIII - Busca

À vista do quarto perfeitamente intacto, exceto pela nossa entrada violenta, começamos a nos acalmar um pouco e assim recuperar nossos sentidos o suficientemente para dispensar os homens. Ocorreu a Mademoiselle a possibilidade de Carmilla ter sido acordada pelo alvoroço em sua porta e, em seu pânico inicial, tivesse saltado de sua cama e se escondido em um armário, ou por detrás de uma cortina, de onde não podia, naturalmente, sair até que o mordomo e seus criados tivessem se retirado. Recomeçamos então nossa busca e começamos a chamar o nome dela novamente.

Foi tudo sem resultado. Nossa perplexidade e agitação aumentaram. Examinamos as janelas, mas estavam seguras. Eu implorei a Carmilla, se ela havia se ocultado, para não mais brincar esse truque cruel, para sair e pôr fim em nossos anseios. Foi tudo inútil. Eu estava convencida naquele momento de que ela não estava no quarto, nem no vestíbulo, cuja porta ainda estava trancada deste lado. Ela não poderia ter passado por ali. Eu estava completamente perplexa. Teria Carmilla descoberto uma dessas passagens secretas que a antiga governanta disse saber existir no schloss, embora a tradição de suas localizações exatas tinham se perdido? Um pouco de tempo, sem dúvida, explicaria tudo, absolutamente perplexa como, no presente, estávamos.

Passava das quatro horas e preferi passar as horas restantes de escuridão no quarto de Madame. A luz do dia não trouxe uma solução para o problema. Todos os agregados da casa, com meu pai encabeçando, encontravam-se em estado de agitação na manhã seguinte. Cada parte do castelo foi pesquisada Os porões foram explorados. Nenhum rastro da desaparecida jovem pôde ser descoberto. O córrego estava prestes a ser dragado. Meu pai estava preocupado em que história teria para contar à mãe da pobre garota em seu retorno. Também eu me encontrava do mesmo modo, embora minha tristeza fosse de um tipo bem diferente.

A manhã transcorreu em alerta e excitação. Era já uma hora e ainda nenhuma notícia. Corri até o quarto de Carmilla e a encontrei de pé em sua penteadeira. Fiquei atônita. Eu não podia acreditar em meus olhos. Ela me chamou até ela com seu lindo dedo, em silêncio. Seu rosto expressava medo extremo. Corri para ela em um êxtase de alegria e abracei-a e beijei-a de novo e de novo. Corri para a campainha e toquei-a com veemência para trazer os outros para o local, uma vez que poderia aliviar a ansiedade do meu pai.

— Cara Carmilla, que houve com você todo esse tempo? Estamos em agonias de ansiedade por você — exclamei. — Onde você estava? Como é que você voltou?
— A noite passada foi uma noite de maravilhas — disse ela.
— Por piedade, explique tudo que puder.
— Passava das duas na noite passada — disse ela — quando fui dormir em minha cama, como de costume, com as minhas portas trancadas, a do vestíbulo e a que abre para o corredor. Meu sono foi ininterrupto e, até onde sei, sem sonhos, mas só agora eu acordei no sofá, no vestíbulo ali, e encontrei aberta a porta entre os quartos e a outra porta forçada. Como tudo isso poderia ter acontecido sem que eu acordasse? Deve ter sido seguida de muito barulho e eu sou particularmente fácil de ser acordada. Como eu poderia ter sido carregada para fora de minha cama sem ter tido interrompido o meu sono, eu que ao menor movimento
me assusto?

Nesse meio tempo, Madame, Mademoiselle, meu pai e um grupo de empregados estavam no quarto. Carmilla foi, naturalmente, assoberbada com perguntas, congratulações e boas-vindas. Ela tinha, então, uma história para contar e parecia a menos capaz de todos de sugerir qualquer forma de avaliar o que tinha acontecido. Meu pai deu uma volta pelo quarto, pensando. Vi o olhar de Carmilla segui-lo por um momento com um brilho ladino e sinistro. Quando meu pai dispensou os servos, Mademoiselle saíra em busca de uma pequena garrafa de valeriana e sal volátil, não havendo no momento, no quarto com Carmilla, ninguém mais além de meu pai, Madame e eu. Ele veio até ela pensativamente, tomou-lhe a mão muito amavelmente, levou-a para o sofá e sentou a seu lado.

— Será que você me perdoa, minha cara, se arrisco uma conjectura e faço uma
pergunta?
— Quem poderia ter mais direito? — disse ela. — Pergunte o que quiser e eu vou contar tudo, mas a minha história é simplesmente de perplexidade e obscuridade. Não sei absolutamente nada. Faça qualquer pergunta que quiser, mas sabe, evidentemente, as limitações a que mamãe me submeteu.
— Perfeitamente, minha querida filha. Não preciso abordar os temas sobre os quais ela desejou nosso silêncio. Agora, a maravilha da noite passada consiste em ter sido removida de sua cama e de seu quarto, sem ter sido acordada, e essa mudança parece ter ocorrido enquanto as janelas ainda estavam fechadas e as duas portas trancadas por dentro. Vou lhe dizer a minha teoria e fazer-lhe uma pergunta.

Carmilla estava inclinada sobre a mão desanimadamente. Madame e eu ouvíamos sem respirar.

— Agora, minha pergunta é esta. Alguma vez você já suspeitou ter caminhado durante o sono?
— Nunca, desde que eu era muito jovem, de fato.
— Mas você caminhava em seu sono quando era jovem?
— Sim, eu sei que sim. Era informada frequentemente pela minha velha babá. Meu pai sorriu e acenou a cabeça.
— Bem, é isso o que aconteceu. Você se levantou em seu sono, desbloqueou a porta, não deixando a chave na fechadura como de costume, mas levando-a e trancando-a pelo lado de fora. Você retirou novamente a chave e levou-a consigo para algum dos vinte e cinco quartos deste andar, ou talvez para cima ou para baixo das escadas. Há tantos quartos e armários, muitos mobiliários pesados e tal acúmulo de madeira que exigiria uma semana para revistar esta antiga casa completamente. Você percebe, agora, o que quero dizer?
— Sim, mas não de todo — ela respondeu.
— E como, papai, você dá conta dela se achar no sofá, no vestíbulo que tínhamos revistado com tanto cuidado?
— Ela chegou lá depois que vocês tinham revistado, ainda em seu sono e, finalmente, despertou espontaneamente, ficando tão surpresa ao descobrir onde estava como qualquer outra pessoa ficaria. Gostaria que todos os mistérios fossem tão fácil e inocentemente explicados como o seu, Carmilla — disse ele, rindo. — E assim podemos congratular-nos com a certeza de que a mais natural explicação do ocorrido é uma que não envolve drogas, adulteração de fechaduras, assaltantes, envenenadores ou bruxas, nada que precise alertar Carmilla ou qualquer outra pessoa para nossa segurança.

Carmilla estava olhando charmosamente. Nada poderia ser mais belo que suas cores. Sua beleza foi, creio eu, realçada por aquele gracioso langor que era peculiar a ela. Acho que meu pai comparava silenciosamente o olhar dela com o meu, pois ele disse:

— Gostaria que minha pobre Laura estivesse procurando mais a si mesma — e suspirou.

Assim nossas preocupações felizmente terminaram e Carmilla retornou para seus amigos.

IX - O Doutor

Como Carmilla não queria ouvir falar de ter uma acompanhante dormindo no quarto dela, meu pai decidiu que uma serva deveria dormir do lado de fora da porta para que ela não tentasse fazer uma outra excursão, sem estar presa em sua própria porta. Aquela noite passou calmamente, e, na manhã seguinte, logo cedo, o médico, a quem o meu pai tinha chamado para mim sem dizer uma palavra sobre isso, chegou para me ver. Madame acompanhou-me até a biblioteca. Ali, o sério e pequeno doutor, com cabelos brancos e óculos que mencionei antes, esperava para me receber. Eu lhe contei a minha história e enquanto eu o fazia, tornou-se cada vez mais sério.

Nós estávamos em pé, ele e eu, no recesso de uma das janelas, de frente um para o outro. Quando terminei de contar, ele se recostou, com seus ombros contra a parede, olhos fixos em mim seriamente, com um interesse em que havia um traço de horror. Após um minuto de reflexão, ele perguntou a Madame se podia ver o meu pai. Ela foi enviada, por conseguinte, e, quando ele entrou sorrindo, disse:

— Atrevo-me a dizer, doutor, você vai me dizer que sou um velho tolo por ter trazido você aqui. Espero que eu seja mesmo.

Mas seu sorriso esvaiu-se em sombra quando o médico, com uma cara muito séria, chamou-o para o lado. Ele e o médico falaram durante algum tempo justamente no mesmo recesso onde eu tinha conversado com o doutor. Parecia uma fervorosa e argumentativa conversa. O quarto é muito grande e eu e Madame ficamos juntas, ardendo de curiosidade, até o final. Nenhuma palavra pudemos ouvir, no entanto, porque falavam em um tom muito baixo. O profundo recesso da janela praticamente ocultavam o médico de vista, muito perto de meu pai, cujos pés, braços e ombros podíamos só ver. As vozes eram, suponho eu, as menos audíveis para o tipo de ambiente que a grossa parede e a janela formavam. Depois de um tempo, meu pai olhou para o aposento. Estava pálido, pensativo, e supus, agitado.

— Laura, querida, venha aqui por um momento. Madame, não vamos incomodá-la mais no momento — disse o médico.

Concordando, aproximei-me, pela primeira vez um pouco alarmada pois, embora eu me sentisse muito fraca, não me sentia mal, e força, imagino, é uma coisa que se pode pegar quando nos agrada. Meu pai estendeu sua mão para mim, quando me aproximei, mas ele olhava para omédico, e disse:

— Isso certamente é muito estranho, eu não entendo bem. Laura, venha aqui, querida. Agora preste atenção ao doutor Spielsberg e lembre-se de si mesma.
— Você mencionou uma sensação como a de duas agulhas perfurando a pele, em algum lugar de seu pescoço, na noite quando teve seu primeiro sonho horrível. Existe ainda algum machucado?
— Nenhum — respondi.
— Você pode indicar com o dedo ponto em que você acha que isso aconteceu?
— Pouco pouco abaixo de minha garganta, aqui — respondi.

Eu usava um vestido caseiro que cobria o lugar que apontava.

— Agora vamos nos certificar — disse o médico. — Você não se importaria se seu pai baixasse seu vestido um pouco. É necessário para detectar um sintoma da queixa de que você tem sido vítima. Eu aquiesci. Foi apenas uma polegada ou duas abaixo da borda do meu colarinho.
— Deus me abençoe! O que é isso? — exclamou meu pai, empalidecendo.
— Você vê agora com os seus próprios olhos — disse o médico, com um triunfo sombrio.
— O que é isso? — exclamei, começando a ter medo.
— Nada, minha querida menina, mas uma pequena mancha azul, do tamanho da ponta de seu dedo mindinho. Agora, — continuou ele, dirigindo-se a papai — a questão é saber qual é o melhor a ser feito?
— Existe algum perigo? — exortei, com grande agitação.
— Espero que não, minha cara — respondeu o médico. — Não vejo por que você não deva se recuperar. Não vejo por que você não deva começar imediatamente a se sentir melhor. Esse é o ponto no qual a sensação de estrangulamento começa?
— Sim — respondi.
— E, lembre-se, tanto quanto puder, o mesmo ponto foi uma espécie de centro dessa emoção que você descreveu ainda agora, como a corrente de um riacho frio correndo contra você?
— Pode ter sido, acho que foi.
— Ah, vê? — acrescentou ele, voltando-se para meu pai. — Posso trocar umas palavras com a Madame?
— Certamente — disse o meu pai.

Ele chamou Madame e disse:

— Encontrei minha jovem amiga aqui longe de estar bem. Não terá qualquer grande conseqüência, espero eu, mas será necessário que algumas medidas sejam tomadas, o que eu vou explicar passo a passo. Enquanto isso, Madame, você será muito útil não deixando Miss Laura ficar sozinha por um momento. Essa é a única orientação que preciso dar no presente. É indispensável.

— Podemos confiar em sua bondade, Madame, eu sei — acrescentou meu pai.

Madame aquiesceu ansiosamente.

— E você, querida Laura, sei que vai observar a orientação do médico.
— Vou ter de pedir sua opinião sobre uma outra paciente, cujos sintomas lembram um pouco os de minha filha, que acabam de ser detalhadas para você - muito mais suaves na forma, mas, acredito muito, que da mesma espécie. Ela é uma jovem, nossa hóspede, mas como disse que vai passar a manhã aqui, não pode fazer melhor do que tomar seu café da manhã e, então vê-la. Ela não desce até o começo da tarde.

— Agradeço — disse o médico. — Vou ficar com vocês, então, até cerca de sete da noite.

Então eles repetiram suas recomendações para mim e para Madame e, com esse compromisso, meu pai nos deixou e saiu com o médico. Eu os vi caminhando juntos para cima e para baixo entre a estrada e o fosso, sobre o gramado em frente do castelo, evidentemente absorvidos em séria conversa. O médico não retornou. Eu o vi montar seu cavalo, tomar suas rédeas e cavalgar para o leste através da floresta. Quase ao mesmo tempo, vi um homem chegando com as cartas, desmontar e entregar a sacola a meu pai.

Enquanto isso, Madame e eu estávamos ambas ocupadas, perdidas em conjecturas quanto à razão da singular e fervorosa orientação que o médico e meu pai tinham concordado em nos impor. Madame, que depois me disse, estava com medo de que o médico diagnosticara um súbito ataque em que, sem ajuda imediata, eu poderia perder minha vida ou, pelo menos, ser seriamente ferida. A interpretação não me impressionou. Eu imaginei, talvez felizmente para meus nervos, que a receita foi prescrita apenas para garantir uma companhia, que impediria que me excitasse demais, comesse frutos verdes ou fizesse qualquer uma das supostas cinquenta coisas doidas a que os jovens são propensos. Cerca de meia hora depois meu pai entrou. Tinha uma carta na mão e disse:

— Esta carta está atrasada, é do General Spielsdorf. Ele deveria ter chegado aqui ontem, pode vir até amanhã ou pode estar aqui hoje.

Ele colocou a carta aberta em minha mão, mas não parecia satisfeito como quando uma esperada, especialmente uma tão amada visita como a do General estava chegando. Pelo contrário, ele olhou como se desejasse estar no fundo do Mar Vermelho. Havia claramente uma coisa em sua mente que ele preferia não divulgar.

— Papai, querido, você vai me explicar isso? — disse eu, repentinamente pousando minha mão sobre seu braço, e olhando, estou certa, implorativamente em seu rosto.
— Talvez — respondeu, alisando o meu cabelo carinhosamente acima de meus olhos.
— Será que o médico acha que estou muito doente?
— Não, querida, ele acha que, se medidas adequadas forem tomadas, estará muito bem novamente, pelo menos, no caminho certo de uma completa recuperação, em um dia ou dois
— respondeu, um pouco secamente. — Desejaria que nosso bom amigo, o General, tivesse escolhido um outro momento, isto é, desejaria que você estivesse perfeitamente bem para recebê-lo.
— Mas diga-me, papai, — insisti — o que ele acha que se passa comigo?
— Nada, você não deve atormentar-me com perguntas — respondeu com mais irritação do que lembro ter exibido antes.

Vendo que eu parecia magoada, suponho, me beijou e acrescentou:

— Você vai saber tudo sobre isso em um dia ou dois, ou seja, tudo o que eu sei.Enquanto isso. você não deve atormentar-se com isso.

Ele se voltou e deixou o quarto, mas voltou antes que eu me perguntasse sobre a enigmática esquisitice de tudo isso. Foi apenas para dizer que ele estava indo para Karnstein, ordenado que o transporte estivesse pronto às doze e que eu e Madame deveríamos acompanhá-lo. Estava indo ver o padre, que vivia próximo de nossos pitoresco cenários, a negócios, e que Carmilla, como nunca os tinha visto, poderia nos seguir, quando descesse, com Mademoiselle, que traria materiais para o que você chamaria de um piquenique, que poderia ser servido para nós no castelo arruinado. Às doze, conforme combinado, eu estava pronta e, não muito tempo depois, meu pai, Madame e eu tomávamos nossa condução.

Passando a ponte levadiça, viramos à direita e seguimos a estrada ao longo da íngreme ponte gótica, para oeste, até chegar à aldeia abandonada e ao castelo de Karnstein. Nenhuma viagem pelo campo pode ser imaginada mais agradável. O terreno quebrava-se em suaves colinas e depressões, todas adornadas com belos bosques, totalmente destituídos de qualquer formalidade comparativa que plantações artificiais e culturas e podas transmitem. As irregularidades do terreno tiram frequentemente a estrada de seu curso e fazem com que o vento ronde lindamente os lados de trincas e depressões acentuadas das serras, entre variedades de solo quase inesgotáveis.

Passando por um desses pontos, de repente, encontramos nosso velho amigo, o General, cavalgando em nossa direção, acompanhado de um servo montado. Sua bagagem o seguia em uma carroça alugada que denominamos de vagão. O General desmontou, enquanto saltávamos e, após os habituais cumprimentos, foi facilmente persuadido a aceitar um lugar na carruagem e enviar seu cavalo e seu servo para o schloss.

X - Enlutado

Fazia cerca de dez meses desde que o tínhamos visto pela última vez, mas esse tempo foi o suficiente para fazer alterar em anos sua aparência. Tinha emagrecido. Algo de melancolia e ansiedade tinha tomado o lugar da cordial serenidade que caracterizava suas atitudes. Seus olhos azuis escuros, sempre penetrantes, agora luziam rigoroso brilho sob suas sobrancelhas peludas e cinzentas. Não era uma mudança como essas que a apenas dor geralmente induz e iradas paixões parecia que tiveram também sua parte dele.

Mal havíamos iniciado nossa jornada, quando o General começou a falar com habitual retidão militar, do luto, como ele designou, que tinha sofrido com a morte de sua amada sobrinha e enfermaria. Ele então eclodiu em um intenso tom de amargura e fúria, reclamando contra as artes infernais de que ela fora uma vítima e, expressando com mais exasperação do que piedade, sua admiração de que o céu tolerasse tão monstruosa indulgência das concupiscências e malignidade do inferno. Meu pai, que viu de imediato que tinha acontecido algo de muito extraordinário, pediu-lhe, se não fosse muito doloroso para ele, para detalhar as circunstâncias que ele pensava justificar os fortes termos com que ele se expressou.

— Devo dizer-lhe tudo com prazer, — disse o general — mas você não iria acreditar em mim.
— Por que não eu? — perguntou.
— Porque — respondeu de mau humor — vocês acreditam em nada além do que é constituído com os seus próprios preconceitos e ilusões. Lembro-me de quando eu era como você, mas aprendi melhor.
— Experimente-me, — disse meu pai — eu não sou um desses dogmáticos como você supõe. Além do mais, sei muito bem que você geralmente exige prova do que acredita e estou, por isso, fortemente predisposto a respeitar suas conclusões.
— Você tem razão em supor que eu não tenha sido levado facilmente a crer no maravilhoso, pois o que tenho passado é maravilhoso, e fui forçado por provas de crédito extraordinário que eram contrárias, diametralmente, a todas as minhas teorias. Fui feito o simplório de uma conspiração sobrenatural. Não obstante sua profissão de confiança na percepção do General, vi meu pai, nesse momento, olhar para ele com, como pensei, marcada suspeita de sua sanidade.

O General não percebeu, felizmente. Olhava melancólica e curiosamente para as
clareiras e panoramas dos bosques que se abriam diante de nós.

— Você está indo para as ruínas de Karnstein? — disse ele. — Sim, é uma fortuita coincidência. Saiba que estava indo pedir-lhe para levar-me lá para inspecioná-las. Tenho um objetivo especial em explorar. Existe uma capela arruinada com um grande número de túmulos dessa extinta família, não?
— Sim, há, muito interessante — disse meu pai. — Espero que você esteja pensando em reclamar o título e o patrimônio?

Meu pai disse isso alegremente, mas o general não cogitou rir ou mesmo sorrir, como cortesia exige da piada de um amigo. Pelo contrário, ele olhou sério e até mesmo feroz, ruminando sobre um assunto que suscitou sua indignação e seu horror.

— Algo muito diferente — disse ele, roucamente. — Quero dizer desenterrar algumas dessas distintas pessoas. Espero, pela bênção de Deus, realizar um sacrilégio piedoso aqui, que irá aliviar a nossa terra de monstros e permitir que pessoas honestas possam dormir em suas camas, sem serem atacadas por assassinos. Tenho coisas estranhas para lhe dizer, meu caro amigo, que eu mesmo teria reputado como incrível poucos meses atrás.

Meu pai olhou para ele novamente, mas desta vez não com um olhar de suspeita,mas com um olho, sim, de perspicaz inteligência e alerta.
— A casa de Karnstein — disse ele — foi extinta há muito. Cem anos pelo menos. Minha querida esposa era descendente materna dos Karnsteins. Porém, o nome e o título há muito tempo deixaram de existir. O castelo é uma ruína; a aldeia é deserta; faz cinquenta anos desde que a fumaça de uma chaminé foi vista lá; nenhum teto restou.
— Bem verdade. Tenho ouvido muita coisa sobre isso desde que o vi pela última vez, um assunto que vai surpreender você. Mas eu tenho que relatar melhor tudo na ordem em que ocorreu — disse o General. — Você viu minha querida enfermaria, minha filha, posso chama-la. Nenhuma criatura poderia ter sido mais bonita e só há três meses ninguém mais viçosa.
— Sim, coitada!, Quando eu a vi por último certamente ela estava muito bonita — disse meu pai. — Eu fiquei aflito e chocou-me mais do que possa lhe dizer, meu caro amigo. Eu sabia que golpe aquilo fora para você.

Ele tomou a mão do General e eles trocaram uma espécie de aperto. Lágrimas juntaram-se nos olhos do velho soldado. Ele não tentou ocultá-las. Disse:

— Temos sido amigos antigos, eu sabia que sentiria por mim, sem filhos como sou. Ela tinha se tornado um objeto de interesse muito próximo a mim e retribuia meus cuidados com uma afeição que alegrava minha casa e fazia minha vida feliz. Tudo isso se foi. Os anos que me restam sobre a terra não podem ser muito longos, mas pela misericórdia de Deus, espero realizar um serviço à humanidade antes de morrer. Para facilitar a vingança do céu sobre os viciados que assassinaram minha pobre criança na primavera de suas esperanças e beleza!
— Você disse, há pouco, que pretende relatar tudo conforme ocorreu — , lembrou meu pai. — Por favor, faça-o. Garanto-vos que não é mera curiosidade que me predispõe. Nessa altura, tínhamos chegado ao ponto em que a estrada Drunstall, pela qual o general tinha chegado, se afastava da estrada que seguia para Karnstein.
— Qual a distância até as ruínas? — perguntou o general, olhando ansiosamente para a
frente.
— Cerca de meia légua, — respondeu meu pai. — Peço, vamos ouvir a história que bondosamente nos prometeu.

XI - A História

— Com todo o meu coração, — disse o General, com um esforço.

Após uma breve pausa para organizar o fio do pensamento, ele iniciou uma das narrativas mais estranhas que já ouvi.

— Minha querida filha esperava com grande prazer a visita que tinha sido tão bondosamente organizada para ela com sua encantadora filha.

Aí ele me fez uma vistosa mas melancólica reverência.

— Nesse meio tempo, tivemos um convite de meu velho amigo, o Conde Carlsfeld, cujo schloss fica cerca de seis léguas além de Karnstein. Era para assistir a série de festas que, você se lembra, foi dada por ele em honra de seu ilustre visitante, o Grão-Duque Charles.
— Sim, e muito magníficas, eu creio, elas foram — disse meu pai.
— Principescas! Mas então sua hospitalidade é bastante majestosa. Ele tem a lâmpada de Aladim. A noite, a partir da qual meu pesar iniciou, foi dedicada a um magnífico baile de máscaras. Os pátios foram totalmente abertos, as árvores decoradas com luzes coloridas. Houve uma tal exibição de fogos de artifício como a própria Paris nunca tinha testemunhado. E aquela música, música, você sabe, é a minha fraqueza, aquela música arrebatadora! A melhor banda instrumental, talvez, do mundo e os melhores cantores que poderiam ser reunidos a partir de todas as grandes óperas da Europa. Enquanto se caminhava por aqueles pátios fantasticamente iluminados, o chateau, banhado pelo luar, jogava uma luz cor-de-rosa de suas longas filas de janelas, e podia-se ouvir de repente aquelas vozes encantadoras roubando o silêncio de algum arvoredo ou surgindo de barcos sobre o lago . Senti-me, enquanto olhava e escutava, levado de volta para o romance e a poesia de minha antiga juventude.

"Quando os fogos de artifício terminaram e o baile teve início, voltamos à nobre suíte de quartos que foram abertos para os dançarinos. Um baile de máscaras, você sabe, é uma bela vista, mas tão brilhante espetáculo dessa natureza eu nunca vira antes. Foi uma reunião muito aristocrática. Fui eu mesmo quase que o único 'ninguém' presente. Minha querida filha estava muito bonita. Não usava máscara. Sua emoção e deleite acrescentavam um indescritível encanto a sua figura sempre adorável. Eu comentei com uma jovem senhora, vestida magnificamente, mas usando uma máscara, que pareceu-me estar observando minha protegida com extraordinário interesse. Eu a tinha visto, no início da noite, no grande salão e, novamente, por alguns minutos, caminhando perto de nós, no terraço sob as janelas do castelo, fazendo o mesmo. Uma senhora, também mascarada, séria e ricamente vestida, com um ar imponente como uma pessoa de classe, a acompanhava como uma dama de companhia. Se a moça não estivesse usando uma máscara, eu poderia, obviamente, ter tido mais certeza sobre a questão se ela estava realmente observando minha pobre querida. Agora estou bem certo de que ela estava. Nós estávamos agora em um dos salões. Minha pobre querida filha tinha dançado e foi descansar um pouco em uma das cadeiras perto da porta. Eu estava de pé próximo. As duas senhoras que mencionei tinham se aproximado e a mais jovem ocupou a cadeira próxima de minha pupila, enquanto sua companheira ficou ao meu lado e, por algum tempo, se dirigiu à outra em tom baixo.

Valendo-se do privilégio de sua máscara, ela se voltou para mim e no tom de um velho amigo, chamando-me pelo nome, deu início a uma conversa, que aguçou minha curiosidade imediatamente. Ela se referiu a muitas cenas onde tinha estado comigo, no Tribunal e em distintas casas. Ela fez alusão a pequenos incidentes em que eu tinha deixado de pensar há muito, mas que, julguei, só tinham permanecido em suspenso na minha memória, pois eles ganharam vida instantaneamente ao seu toque. Tornei-me mais e mais curioso para saber quem ela era, a cada momento. Ela descartou hábil e cortesmente todas as minhas tentativas de descobrir. O conhecimento que demostrou de muitas passagens de minha vida toda, pareceu-me, acima de tudo, estranho. Ela parecia ter um anormal prazer em espicaçar minha curiosidade e, vendo-me boquiaberto em minha ansiosa perplexidade, de uma conjectura para outra. Nesse meio tempo, a moça, a quem a mãe dela chamou pelo nome esquisito de Millarca, quando uma ou duas vezes dirigiu-se a ela, tinha, com a mesma facilidade e graça, entabulado conversação com minha protegida.

Ela se apresentou, dizendo que sua mãe era uma velha conhecida minha. Falou da aprazível audácia que uma máscara tornava possível. Falou como uma amiga. Admirou seu vestido e insinuou muito gentilmente a admiração pela sua beleza. Ela a divertiu com hilariantes críticas sobre as pessoas que lotavam o baile e riu da diversão de minha pobre criança. Era muito engraçada e alegre quando queria e, após algum tempo tinham se tornado muito boas amigas. A estranha baixou sua máscara, exibindo uma rosto notavelmente belo. Eu nunca tinha visto um assim antes nem minha querida filha. Mas apesar de ser novidade para nós, os traços eram tão envolventes, bem como encantadores, que era impossível não sentir a poderosa atração. Minha pobre menina a sentiu. Nunca vi ninguém mais arrebatada por outra à primeira vista, a menos que, na verdade, era a própria estranha que parecia ter perdido completamente o seu coração para ela.

Enquanto isso, avaliando a liberdade de uma máscara, eu coloquei algumas questões à dama mais velha.

— Você me deixou completamente perplexo — disse eu, rindo. — Isso não é o suficiente? Não vai, agora, consentir que fiquemos em igualdade de condições, fazendo-me a gentileza de remover a máscara?

— Pode um pedido ser mais irracional? — respondeu. — Peça a uma moça para ceder uma vantagem! Além disso, como sabe que pode me reconhecer-me? Anos provocam mudanças.
— Como vê — disse eu, com uma mesura e, suponho, um sorriso ligeiramente melancólico.
— Como dizem os filósofos — ela disse. — E como sabe que uma visão de minha face o ajudaria?
— Eu devia ter a oportunidade disso — respondi. — É inútil tentar fazer-se de anciã. Sua aparência a trai.
— Anos, no entanto, já se passaram desde que eu o vi, tanto quanto desde que me viu, pois é isso que estou considerando. Millarca, ali, é minha filha. Não posso, então, ser jovem, mesmo na opinião das pessoas a quem o tempo ensinou a ser indulgente. Eu não gostaria de ser comparada com o que você lembra de mim. Você não tem nenhuma máscara para remover. Você não pode me oferecer nada em troca.
— Meu pedido é para a sua piedade, para removê-la.
— E o meu a você, deixá-la ficar onde está — respondeu ela.
— Bem, então, pelo menos você vai me dizer se é francesa ou alemã, você fala as duas línguas tão perfeitamente.
— Acho que não devo dizer-lhe isso, General. Pretende surpreender-me e está procurando o ponto exato do ataque.
— Em todo o caso, você não vai negar isso, — eu disse — que sendo honrado com sua permissão para conversar, eu deveria saber como lidar com você. Devo dizer Madame Condessa?

Ela riu e iria, sem dúvida, retrucar-me com outra evasiva se, na verdade, eu pudesse mudar qualquer ocorrência em toda a circunstância de uma entrevista que foi pré-arranjada, como acredito agora, com a mais profunda astúcia, como suscetível de ser modificada acidentalmente.

— Quanto a isso — ela começou, mas foi interrompida, no momento em que abria seus lábios, por um cavalheiro vestido de preto, que parecia particularmente elegante e distinto, com esta desvantagem: sua cara era a mais mortiferamente pálida que já vi, salvo na morte. Ele não estava mascarado, mas em pleno traje noturno de um cavalheiro. Disse, sem um sorriso, mas com uma delicada e invulgarmente baixa mesura:
— Madame Condessa me permitiria dizer algumas poucas palavras que podem interessar-lhe?
— A mulher virou rapidamente para ele e tocou seu lábio em sinal de silêncio, depois me disse:
— Mantenha o meu lugar para mim, General. Voltarei assim que possível.

E com essa injunção, divertidamente dada, ela caminhou um pouco para o lado com o cavaleiro de negro e conversaram durante alguns minutos, aparentemente muito sinceramente. Eles então saíram lentamente juntos no meio da multidão e eu os perdi por alguns minutos.

Passei o intervalo martelando meu cérebro por uma conjetura sobre a identidade da mulher, que parecia tão gentilmente lembrar-se de mim. Pensava em virar e juntar-me à conversa entre a minha linda pupila e a filha da Condessa, tentando se, enquanto ela não retornava, poderia ter uma surpresa em estoque para ela, tendo seu nome, título, chateau e quintas nas pontas de meus dedos. Mas naquele momento ela voltou, acompanhada do pálido homem de preto, que disse:

— Voltarei e informarei Madame Condessa quando seu carro estiver na porta.
Ele se retirou com uma reverência."

XII - O Pedido

"— Então, vamos perder Madame Condessa, mas espero que apenas por algumas horas — disse eu, com uma mesura.
— Pode ser apenas isso ou pode ser por algumas semanas. Foi muito infeliz para mim as palavras dele neste momento. Você sabe quem sou?
— Eu lhe garanti que não.
— Deve conhecer-me, — disse ela — mas não no presente. Somos mais velhos e melhores amigos do que, talvez, você suspeite. Eu ainda não posso declarar-me. Vou passar três semanas em seu belo schloss, sobre o qual tenho feito perguntas. Irei, então, procurá-lo para uma hora ou duas e renovar uma amizade em que nunca penso sem mil e uma recordações agradáveis. Neste momento uma notícia chegou-me como um raio. Devo partir agora e viajar por um caminho tortuoso, quase uma centena de quilômetros, com toda a rapidez que me for possível. Minhas perplexidades se multiplica. Estou dissuadida apenas pela reserva obrigatória que pratico em relação ao meu nome de lhe fazer um pedido muito singular a você. Minha pobre criança ainda não recuperou sua força. Seu cavalo caiu com ela em uma caçada de que participou para observar. Seus nervos ainda não se recuperaram do choque e nosso médico disse que ela não deve exercer-se em nada durante algum tempo. Viemos até aqui, em conseqüência, em pequenas etapas, no máximo seis léguas ao dia. Devo agora viajar de dia e de noite, em uma missão de vida e morte, uma missão de crítica e momentosa natureza a qual só vou ser capaz de explicar para você quando nos reunimos, como espero que iremos, em poucas semanas, sem necessidade de qualquer dissimulação.

Ela passou a fazer seu pedido e foi no tom de uma pessoa de quem um pedido dessa natureza chegava a mais do que a busca de um favor. Isso foi apenas na forma e, como pareceu, muito inconscientemente. Nos termos em que foi expressa, nada poderia ser mais suplicante. Era simplesmente que eu consentisse em tomar conta de sua filha durante a sua ausência. Esse foi, considerando tudo, um estranho, para não dizer um audacioso pedido. Ela, de alguma forma, desarmou-me, por afirmar e admitir tudo o que podia ser instado contra ele confiando inteiramente em meu cavalheirismo. Ao mesmo momento, por uma fatalidade que parece ter predeterminado tudo o que aconteceu, minha pobre criança chegou ao meu lado e,em um tom suave, implorou-me para convidar sua nova amiga, Millarca, a fazer-nos uma visita. Ela tinha acabado de sondá-la e pensou, se a mãe permitisse, ela adoraria.

Numa outra ocasião eu deveria ter dito a ela para esperar um pouco até que, pelo menos, soubéssemos quem elas eram. Mas não tive um momento para pensar. As duas mulheres assediaram-me em conjunto e, devo confessar, o refinado e belo rosto da menina, no qual havia algo extremamente envolvente, bem como a elegância e o fogo de alta linhagem, determinou-me. Totalmente vencido, eu me submeti, muito facilmente, e assumi a guarda da jovem dama, a quem sua mãe chamou Millarca.

A Condessa acenou para a filha dela, que a escutou com grande atenção, enquanto ela dizia, em termos gerais, como repentina e peremptoriamente tinha sido convocada e também do acordo que tinha feito para que ela ficasse sob meus cuidados, acrescentando que eu era um de seus primeiros e mais valiosos amigos. E que fez, obviamente, tal pedido que o caso parecia pedir por encontrar-se sozinha, refletindo, em uma posição que não a agradava nem um pouco.

O cavalheiro em preto retornou e muito cerimoniosamente conduziu a senhora para fora da sala. O comportamento desse cavalheiro era tal de forma a impressionar-me com a convicção de que a Condessa era uma senhora de muito mais importância do que seu modesto título sozinho poderia ter me levado a assumir. Seu último encargo para mim foi que nenhuma tentativa fosse feita para saber mais sobre ela do que eu poderia ter já imaginado, até seu regresso. Nossa distinta hóspede, que já era nossa convidado, sabia suas razões.

— Mas aqui — disse ela — nem eu nem minha filha poderemos permanecer em segurança por mais de um dia. Eu retirei minha máscara imprudentemente por um momento, há cerca de uma hora e, tarde demais, imaginei que tivesse me visto. Assim, resolvi procurar uma oportunidade de conversar um pouco com você. Tivesse eu achado que você me vira, eu teria pessoalmente apelado ao seu elevado senso de honra para manter meu segredo por algumas semanas. Sendo assim, estou satisfeita de que você não me viu, mas se você agora suspeita, ou refletindo, possa suspeitar quem eu sou, devo submeter-me, nos mesmos moldes, inteiramente à sua honra. Minha filha vai observar o mesmo segredo e eu bem sei que você vai, de tempos em tempos, lembrá-la, porque ela poderá levianamente divulgá-lo.

Ela sussurrou algumas palavras para a filha, beijou-a apressadamente duas vezes e foi embora, acompanhada do pálido cavalheiro de preto, e desapareceu na multidão.

— Na sala ao lado, — disse Millarca — há uma janela que dá para a porta do salão. Gostaria de dar uma última olhada em minha mãe e de beijar a minha mão para ela.

Nós consentimos, é claro, e a acompanhamos até a janela. Olhamos lá fora e vimos uma bela e antiquada carruagem, com uma tropa de batedores e lacaios. Vimos a magra e pálida figura do cavalheiro de preto, quando ele apanhou um espesso manto de veludo e colocou-o sobre os ombros dela e jogou o capuz sobre sua cabeça. Ela acenou a cabeça para ele e apenas tocou a mão dele com a dela. Ele curvou para baixo repetidamente enquanto a porta era fechada e a carruagem começou a se mover.

— Ela se foi — disse Millarca, com um suspiro.
— Ela se foi — eu repeti para mim mesmo, pela primeira vez, na pressa dos momentos que tinham decorrido desde o meu consentimento, refletindo sobre a loucura de meu ato.
— Ela não olhou para cima — disse a moça, plangentemente.
— A condessa tinha retirado a sua máscara, talvez, e tomou o cuidado de não mostrar seu rosto — eu disse — e ela não podia saber que você estava na janela.
— Ela suspirou e encarou-me. Estava tão linda que eu abrandei. Fiquei triste por ter, por um momento, me arrependido de minha hospitalidade e determinei compensá-la para a inadmitida grosseria de minha recepção.

A moça, recolocando a máscara, juntou-se a minha pupila para persuadir-me a voltar aos pátios, quando o concerto estava perto de ser reiniciado. Fizemos isso e caminhamos para cima e para baixo do terraço, situado sob as janelas do castelo. Millarca tornou-se muito íntima de nós e divertiu-nos com animadas descrições e histórias da maioria da grande multidão que víamos a partir do terraço. Eu gostava dela mais e
mais a cada minuto. Suas fofocas, sem serem de mau gosto, eram muito divertidas para mim, que tinha estado tanto tempo fora do grande mundo. Eu imaginei que vida ela iria dar às nossas por vezes solitárias noites em casa.

Esse baile não acabou até que o sol da manhã alcançasse o horizonte. Agradou ao Grão-Duque dançar até então, de forma que as pessoas leais não podiam ir embora ou pensar em cama. Mal havíamos entrado no salão lotado, quando minha protegida me perguntou o que havia acontecido com Millarca. Pensei que ela estivesse do seu lado e ela imaginou que estivesse do meu. O fato era, nós a tínhamos perdido. Todos os meus esforços para encontrá-la foram infrutíferos. Eu temia que ela tivesse cometido um engano, na confusão de uma separação momentânea de nós, outras pessoas como seus novos amigos e os tivesse, possivelmente, perseguido e os perdido nos extensos pátios que foram abertos para nós.

Agora, em seu pleno vigor, reconhecia um nova loucura minha em ter assumido o encargo de uma moça sem nada saber além do nome dela e, como estava preso por promessas, de cujas razões para a imposição eu nada sabia, não poderia apontar minha busca dizendo que jovem sumida era a filha da Condessa, que partira poucas horas antes.

 A manhã chegou. Era dia claro quando desisti de minha busca. Só perto das duas horas do dia foi que ouvimos alguma coisa de nosso misterioso encargo.Àquela uma hora, um servo bateu na porta de minha sobrinha para dizer que tinha sido fervorosamente solicitado por uma moça, que parecia estar em grande perigo, as dizer onde poderia encontrar o General Barão Spielsdorf e a menina sua filha, a cujo cargo tinha sido deixada por sua mãe.

Não podia haver dúvidas, não obstante a ligeira imprecisão que a nossa jovem amiga tinha entendido e por isso ele repetia. Céus, se a tivéssemos perdido!Ela disse à minha pobre criança uma história que dava conta de ter falhado em nos reencontrar por tanto tempo. Muito tarde, ela disse, entrara no dormitório da governanta em desespero para nos encontrar e, então, tinha caído em um sono profundo que, longo como foi, não fora suficiente para lhe restituir suas forças após o cansaço do baile. Naquele dia Millarca foi para casa com nós. Fiquei muito feliz, afinal, para ter assegurado uma companheira tão encantadora para a minha querida menina."

XIII - O Lenhador

"Dentro em breve, no entanto, apareceram alguns inconvenientes. Em primeiro lugar, Millarca queixou-se de extrema fraqueza, a fraqueza que se manteve após sua recente doença, e ela nunca saia de seu quarto até a tarde esta bem avançada. Nos dias que se seguiram, foi descoberto acidentalmente, embora ela sempre trancasse a porta por dentro e nunca retirasse a chave de seu lugar, que admitiu à camareira que a ajudava em seu banho, que esteve, sem dúvida, às vezes longe de seu quarto no início da manhã e, em várias vezes, bem tarde do dia, antes que ela pudesse entender como havia se movido. Foi repetidamente vista das janelas do schloss, no primeiro desmaio cinzento da manhã, caminhando através das árvores, na direção do
leste, parecendo uma pessoa em transe. Isso convenceu-me que ela andava durante o sono. Mas esta hipótese não resolvia o enigma. Como é que ela saia de seu quarto, deixando a porta trancada por dentro? Como é que ela fugia da casa sem ser barrada por porta ou janela?

No meio de minhas perplexidades, uma ansiedade de muito mais urgência se apresentou. Minha querida filha começou a perder a sua aparência e saúde de uma maneira tão misteriosa e mesmo horrível que eu me fiquei inteiramente assustado. Ela foi inicialmente assaltada por terríveis sonhos. Depois, como ela imaginou, por
um espectro, por vezes semelhante a Millarca, por vezes sob a forma de um monstro, indistintamente visto andando em volta dos pés de sua cama, de um lado para o outro. Por fim vieram as sensações. Uma, não desagradável, mas muito peculiar, disse ela, semelhante ao fluxo de um córrego gelado contra seu peito. Mais tarde, ela sentiu algo parecido com um par de grandes agulhas furarem-na um pouco abaixo da garganta, com uma dor muito aguda. Algumas noites depois, seguiu-se em um gradual e convulsivo sentido de estrangulamento, e depois veio inconsciência."

Eu podia ouvir claramente cada palavra que o bom General estava dizendo porque, a essa altura, estávamos percorrendo a curta relva que se propaga em ambos os lados da estrada que se aproxima da vila a céu aberto, que não tinha mostrado a fumaça de uma chaminé por mais de meio século. Você pode adivinhar quão estranha me senti enquanto ouvia meus próprios sintomas descritos tão exatamente naqueles que tinham sido experimentados pela pobre menina que, a não ser pela catástrofe que se seguiu, teria sido naquele momento uma visitante no castelo de meu pai. Você pode supor, também, como eu me senti enquanto o ouvia detalhar hábitos e misteriosas peculiaridades que eram, na verdade, os da nossa bela hóspede, Carmilla! Uma clareira abriu-se na floresta. Estávamos repentinamente sob as chaminés e arestas
da aldeia arruinada e das torres e ameias do castelo desmantelado, ao redor do qual gigantescas árvores se agrupavam, pendendo sobre nós em suave reverência. Em um sonho assustado, desci da carruaqgem e, em silêncio, pois cada um de nós tinha muito em que pensar. Logo vencemos a subida e nos vimos entre as câmaras espaçosas, sinuosas escadas e corredores escuros do castelo.

— E esta foi, um dia, a palaciana residência do Karnsteins! — disse o velho General em seguida enquanto, de uma grande janela, ele olhava toda a vila e via a ampla e ondulante vastidão da floresta. — Foi uma família má e aqui seus sangrentos anais foram escritos — ele prosseguiu. — É difícil que eles possam, após a morte, continuar contaminando a raça humana com as suas luxúrias atrozes. Aquela é a capela do Karnsteins, lá em baixo.

Ele apontou para as paredes cinzentas do edifício gótico parcialmente visível através da folhagem, um pouco além do caminho íngreme.

— E eu ouvi o machado de um lenhador, — ele acrescentou — ocupado entre as árvores que o rodeiam. Possivelmente pode nos dar a informação que estou procurando e aponte a sepultura de Mircalla, Condessa de Karnstein. Esses rústicos preservam as tradições locais das grandes famílias, cujas histórias desapareceram entre os ricos e intitulados tão rapidamente como as próprias famílias se extinguiram.

— Nós temos um retrato, em casa, de Mircalla, a Condessa Karnstein. Gostaria de vêlo?
— perguntou meu pai.
— Haverá tempo, caro amigo — respondeu o General. — Acredito que vi o original e um motivo que levou-me a você mais cedo do que eu tencionava inicialmente foi explorar a capela da qual agora nos aproximamos.
— O que! Ver a Condessa Mircalla — exclamou o meu pai. — Como, se ela está morta há mais de um século!
— Não tão morta como lhe apetece, segundo me disseram — respondeu o General.
— Eu confesso, General, você absolutamente me confunde — respondeu meu pai, olhando para ele, imagino, por um momento com o retorno da suspeita detectada antes. Mas, embora não houve indignação e repulsa, por vezes, nos modos do velho General nada havia de volúvel.

— Parece-me — disse ele, quando passamos sob o pesado arco gótico da igreja, cujasdimensões justificavam ter tanto estilo — que uma coisa que pode me interessar durante os poucos anos que me restam sobre a terra será desabafar em uma vingança que, agradeço a Deus, ainda pode ser realizada por um braço mortal.

— De que vingança você está falando? — perguntou meu pai, com espanto crescente.
— Quero dizer decapitar o monstro — ele respondeu, com um feroz rubor e uma batida de pé que ecoou pesarosamente através da ruína oca e sua mão crispada levantou-se no mesmo momento, como se empunhasse o cabo de um machado, enquanto ela tremia ferozmente no ar.

— O quê? — exclamou meu pai, mais do que nunca perplexo.
— Para cortar sua cabeça fora.
— Cortar-lhe a cabeça fora!
— Sim, com um machado, com uma espada ou com qualquer coisa que possa abrir caminho através de sua garganta assassina. Você vai ouvir — ele respondeu, tremendo de raiva. Correndo à frente, acrescentou:
— Isto vai servir de banco. Sua querida filha está cansada. Deixe-a se sentar e eu, em poucas palavras, encerrarei minha história terrível.

O bloco quadrado de madeira, que jazia no gramado do pavimento da capela, formou um banco em que eu estava muito feliz por me sentar. Enquanto isso, o General convocou o lenhador que removia alguns galhos inclinados sobre as antigas paredes. Com o machado na mão, o calejado e velho indivíduo se pôs diante de nós. Ele não podia nos contar alguma coisa daqueles monumentos, mas havia um velho, ele disse, um vagabundo da floresta, atualmente alojado na casa do sacerdote, cerca de duas milhas de distância, que poderia apontar cada monumento da antiga família Karnstein e, por uma ninharia, ele se comprometeu a trazê-lo consigo, se lhe déssemos um de nossos cavalos, em pouco mais de meia hora.

— Tem estado a serviço por muito tempo nesta floresta? — perguntou meu pai ao velho.
— Tenho sido um lenhador aqui — ele respondeu na sua gíria — sob as ordens do guarda-florestal todos os meus dias, assim como meu pai antes de mim e assim por diante, como tantas gerações quantas eu possa contar. Eu poderia mostrar-lhe a própria casa na aldeia aqui em que meus antepassados viveram.
— Como a aldeia ficou deserta? — perguntou o general.
— Foi atormentada por revenantes, senhor, vários foram seguidos até suas sepulturas, ali detectados pelos testes habituais e extintos na forma habitual, por decapitação, pela estaca e pelo fogo, mas não até que muitos dos aldeões fossem mortos.

— Mas depois de todos esses processos de acordo com a lei — continuou ele — tantas sepulturas abertas e tantos vampiros desprovidos de suas horríveis animações, a vila não ficou aliviada. Mas um fidalgo da Morávia, que aconteceu de passar por aqui em viagem, ouviu sobre o assunto, sendo experiente, como muitas pessoas o são em seu país, em tais assuntos, ofereceu-se para livrar a vila de seu algoz. Fê-lo assim: havia uma lua brilhante naquela noite.

Ele galgou, pouco tempo depois do pôr-do-sol, as torres da capela aqui, a partir de onde podia ver claramente o adro abaixo dele. Você pode vê-lo a partir daquela janela. Nesse ponto ele esperou até que viu o vampiro sair de seu túmulo, colocar perto dele a mortalha de linho que estava vestindo e, em seguida, deslizar na direção da aldeia para atacar seus habitantes. O estranho, tendo visto tudo isso, veio do campanário, tomou a mortalha do vampiro e voltou ao topo da torre, onde ficou à espreita. Quando o vampiro regressou de sua caçada e não encontrou sua roupa, gritou furiosamente para o morávio, que ele viu na cimeira da torre e que, em resposta, convidou-o a subir e buscá-la. Quando o vampiro, aceitando o convite, começou a escalar o campanário e, assim, logo tinha atingido as ameias, o morávio, com um golpe de sua espada, partiu seu crânio em dois, arremessou-o para o adro, onde, descendo pelas sinuosas escadas, o estranho o seguiu e cortou-lhe fora a cabeça. Entregou-a e ao corpo, no dia seguinte, aos aldeões, que os empalaram devidamente depois queimaram.

— Esse nobre da Morávia teve autoridade do então chefe da família para remover o túmulo de Mircalla, Condessa Karnstein, o que fez efetivamente, de modo que em pouco tempo o seu local foi completamente esquecido.

— Você pode apontar onde ele se situava? — perguntou o general, ansiosamente.

O homem da floresta sacudiu a cabeça e sorriu.

— Nenhuma alma viva poderia dizer-lhe agora — disse ele. — Além disso, dizem que seu corpo foi removido, mas ninguém tem certeza disso também. Tendo assim falado, como o tempo urgia, deixou cair seu machado e partiu, deixando-nos ouvindo o resto da estranha história do General.


XIV - O Encontro

— Minha amada filha — ele retomou — foi ficando rapidamente pior. O médico que a assistia não tenha a menor ideia sobre a doença dela, uma vez que eu supunha tratar-se de uma doença. Ele viu meu alarme e sugeriu uma consulta. Chamei um hábil médico de Graz. Vários dias se passaram antes que ele chegasse. Era bom e piedoso, bem como um homem estudado. Tendo visto a minha pobre pupila juntos, os dois médicos se retiraram para minha biblioteca para conferenciar e discutir. Eu, a partir do quarto adjacente, onde aguardava, ouvi as vozes dos dois cavalheiros aumentarem em algo mais aguçado que um debate estritamente filosófico. Eu bati na porta e entrei. Achei o velho médico de Graz mantendo sua teoria. Seu rival a combatia com indisfarçável zombaria, acompanhada de ataques de riso. Essa inesperada manifestação indecentes arrefeceu e a altercação terminou à minha entrada.

— Senhor, — disse meu primeiro médico — meu ilustrado irmão parece pensar que você quer um conjurador e não um médico.
— Desculpe-me, — disse o velho médico de Graz, olhando descontente. — Devo estabelecer meu próprio ponto de vista sobre o caso de minha própria maneira uma outra vez. Eu sinto, Senhor General, que minha habilidade e ciência não têm utilidade. Antes farei eu mesmo a honra de sugerir uma coisa você.

"Ele parecia pensativo, sentou-se a uma mesa e começou a escrever. Profundamente desapontado, fiz a minha reverência e, quando me virei para ir, o outro médico olhou sobre o ombro de seu companheiro que estava escrevendo, depois, dando de ombros, significativamente tocou sua própria testa. Esta consulta, então, deixou-me exatamente onde eu estava. Caminhei pelo pátio por pura distração. O médico de Graz, em dez ou quinze minutos, alcançou-me. Ele pediu desculpas por ter me seguido, mas disse que ele não poderia conscientemente ir embora sem deixar algumas palavras a mais. Ele me disse que não poderia estar enganado. Nenhuma doença natural apresentaria os mesmos sintomas e que a morte já estava muito perto. Restava, porém, um dia ou talvez dois de vida. Se o acesso fatal fosse combatido imediatamente, com grande cuidado e habilidade, eventualmente as forças dela voltariam. Mas tudo agora prendia-se aos limites do irrevogável. Mais um ataque poderia extinguir a última centelha de vitalidade, de quem está, a qualquer momento, pronta para morrer.

— E qual é a natureza do ataque a que se refere? — eu roguei.
— Está tudo totalmente estabelecido nesta nota que coloco em suas mãos sobre a condição distinta que você procure o clérigo mais próximo e abra minha carta em sua presença. Em hipótese alguma a leia até que esteja com ele. Você poderia desprezá-la então e é uma questão de vida ou morte. Caso não possa ver o padre, então, na verdade, você pode lê-la.

Perguntou-me, antes de fazer sua despedida definitiva, se eu gostaria de ver um homem curiosamente ilustrado sobre o assunto em questão que, após eu ter lido sua carta, provavelmente me interessaria acima todos os outros, pedindo-me encarecidamente para visitá-lo e, assim, despediu-se. O clérigo estava ausente, e eu li a carta sozinho. Num outro momento ou em outro caso, poderia ter despertado minha zombaria. Mas em que charlatanices as pessoas não vão em busca de uma última oportunidade, quando todos os meios conhecidos falharam e a vida de uma pessoa amada está em jogo?

Nada, você vai dizer, poderia ser mais absurdo do que a carta do ilustrado homem. Era monstruoso o suficiente para tê-lo despachado para um manicômio. Ele disse que a paciente sofria pelas visitas de um vampiro! As punções que ela descreveu como tendo ocorrido perto da garganta, foram, insistiu, a inserção desses dois longos e finos dentes afiados, que, é sabido, são peculiares a vampiros. Não poderia haver dúvida, acrescentou, pois a nítida presença de pequenas marcas lívidas que todos concordavam em descrever como induzidas pelos lábios do demônio e todos os sintomas descritos pela paciente estavam exatamente em conformidade com as verificadas em cada caso de semelhante visitação. Sendo eu próprio totalmente cético quanto à existência de qualquer prodígio como o vampiro, a teoria sobrenatural do bom doutor conduzia, em minha opinião, a um outro exemplo de conhecimento e de inteligência estranhamente associados com a alucinação de alguém. Fiquei tão miserável, no entanto que, em vez de nada fazer, eu segui as instruções da carta.

Eu me ocultei no escuro vestíbulo, que abria para o quarto da pobre paciente, onde uma vela ardia, e observei que ela rapidamente adormeceu. Eu fiquei na porta, espreitando através de uma pequena fenda, com minha espada na mesa ao meu lado, como os meus sentidos alertas, até, pouco depois da uma hora, ver um grande vulto preto, indefinido, rastejando, como pareceu-me, ao longo dos pés da cama e espalhando-se rapidamente sobre a garganta da pobre menina, onde inchou, num momento, numa grande massa palpitante.

Por alguns momentos fiquei petrificado. Depois, saltei em frente com a minha espada na mão. A negra criatura contraiu-se, recuando para os pés da cama, deslizou sobre ela e, de pé no chão a uma jarda dos pés da cama, com um brilho de contida ferocidade e horror encarou-me. Eu vi Millarca. Pensando em não sei o que, golpeei-a instantaneamente com minha espada, mas eu a vi de pé, perto da porta, incólume. Horrorizado, eu a persegui e a atingi novamente. Ela tinha ido embora e minha espada voou para estremecer contra a porta.

Não posso descrever a você tudo o que se passou naquela noite terrível. Toda a casa acesa e agitada. O espectro Millarca tinha ido embora. Mas sua vítima sucumbiu rápido e antes de raiar a manhã, ela morreu."

O velho General estava agitado. Nós não falamos com ele. Meu pai caminhou um pouco além e começou a ler as inscrições das lápides e, assim, ocupado, ele passou pela porta da capela lateral, prosseguindo em suas pesquisas. O General inclinara-se contra a parede, secou seus olhos e suspirou pesadamente. Fiquei aliviada ao ouvir as vozes de Carmilla e Madame que vinham, naquele momento, se aproximando. As vozes desapareceram.

Naquela solidão, tendo acabado de ouvir uma história tão estranha, ligada, como era, com os grandes e nobres mortos cujos monumentos se desfaziam entre a poeiras e a hera ao redor de nós, e cada incidente que se assemelhava tão terrivelmente ao meu próprio e misterioso caso, naquele local assombrado, obscurecida pela altaneira folhagem que crescia por todos os lados, densa e alta acima das suas paredes silenciosas, um horror começou a me assaltar e meu coração naufragou quando pensei que eram minhas amigas, depois de tudo, prestes a entrar e perturbar aquela cena triste e horrenda.

Os olhos do velho General estavam fixos no chão, enquanto permanecia inclinado com sua mão sobre a base de um monumento despedaçado. Sob um estreito e arqueado portal, encimado por uma dessas grotescas figuras demoníacas em que a cínica e medonha fantasia do velho Gótico encontrava prazer em esculpir, eu vi, muito alegremente, o belo rosto e a figura de Carmilla entrar na capela sombria. Eu já estava prestes a me levantar e falar, acenando a cabeça e sorrindo em resposta ao seu peculiar sorriso envolvente, quando com um grito, o velho homem ao meu lado pegou o machado do lenhador e avançou em frente. Ao vê-lo, uma brutal mudança ocorreu nela. Foi uma transformação instantânea e horrível, quando se agachou, recuando. Antes que eu pudesse proferir um grito, ele a atingiu com toda sua força, mas ela mergulhou em seu golpe e, incólume, agarrou-o com seu minúsculo punho. Ele lutou por um momento para se liberar,
mas sua mão abriu-se, o machado caiu no chão, e a jovem tinha ido embora. Ele se estatelou contra a parede. Seu cabelo cinzento caiu diante dos olhos e uma umidade brilhou em seu rosto, como se estivesse às portas da morte.

A terrível cena transcorreu em um instante. A primeira coisa de que me lembro depois foi de Madame de pé diante de mim e impacientemente repetindo uma e outra vez, a pergunta:

— Onde está Mademoiselle Carmilla?

Eu respondi em seguida:

— Eu não sei, eu não posso dizer com certeza, foi para lá — e apontava para a porta por onde Madame acabara de entrar apenas um ou dois minutos antes.
— Mas eu estava de pé ali, na passagem, desde que Mademoiselle Carmilla entrou e ela não retornou.

Ela então começou a chamar Carmilla em toda porta, janela e passagem, mas não obteve
resposta.

— Ela se chama Carmilla? — perguntou o General, ainda agitado.
— Carmilla, sim — respondi.
— Sim, — disse ele — aquela é Millarca. Aquela é a mesma pessoa que há muito tempo foi chamado Mircalla, Condessa Karnstein. Despediu desse maldito chão minha pobre criança, tão depressa quanto possível. Vão para a casa do sacerdote e fiquem lá até chegarmos. Vão embora! Tomara que jamais vejam Carmilla de novo. Vocês não vão encontrá-la aqui.

XV - Ordálio e Execução

Enquanto ele falava, um dos homens de aparência mais estranha que já vi entrou na capela pela porta por onde Carmilla tinha feito sua entrada e sua saída. Era alto, de pescoço curto, derreado, com grandes ombros e vestido de preto. Seu rosto era marrom e seco com sulcos profundos. Usava um chapéu de formato estranho com uma ampla aba. Seu cabelo, longo e grisalho, espalhavam-se sobre seus ombros. Usava um par de óculos de ouro e caminhava lentamente, com uma estranha marcha vacilante, com o rosto virado, por vezes para o céu e, por vezes, curvado para o chão. Parecia que ostentava um sorriso perpétuo. Seu braços longos e finos oscilavam, suas mãos esguias, de luvas pretas e velhas muito grandes para eles, gesticulando e acenando em total abstração.

— O próprio homem! — exclamou o General, avançando com manifesta alegria. — Meu caro Barão, como estou feliz em vê-lo, não tinha esperança de reencontrá-lo tão cedo.

Ele assinalou para meu pai, que tinha a essa altura voltado e levou o fantástico e velho senhor, a quem ele chamou de Barão, para conhecê-lo. Ele se apresentou formalmente e logo iniciaram uma fervorosa conversa. O estranho retirou um rolo de papel de seu bolso e espalhou-o sobre a superfície gasta de uma tumba que restara. Tinha um lápis em seus dedos, com o qual traçava linhas imaginárias de ponto a ponto do papel, a partir de onde relanceava seus olhos para determinados pontos do edifício. Conclui que fosse uma planta da capela. Ele acompanhava, o que denominar, sua palestra com ocasionais exames de um pequeno livro encardido, cujas folhas amarelas estava estreitamente escritas.

Eles passearam juntos para baixo ao lado do corredor, diante do local onde eu estava de pé, conversando enquanto seguiam. Em seguida, começaram a medir distâncias em passos e, finalmente, todos eles se juntaram na frente de uma parte da parede lateral, que começaram a examinar com grande minúcia. Arrancando a hera que se apegara ali e martelando no reboco com as extremidades de pedaços de madeira, raspando aqui e batendo ali. Finalmente, confirmaram a existência de um amplo pedaço de mármore, com letras em relevo esculpidas nele.

Com a ajuda do lenhador, que retornara, uma monumental inscrição e um brasão esculpido foram revelados. Eles comprovaram ser do há muito perdido monumento de Mircalla, Condessa Karnstein. O velho General, embora não tendo a intenção de rezar, levantou as mãos e os olhos para o céu em agradecimento mudo por alguns instantes.

— Amanhã, — eu o ouvi dizer — o comissário estará aqui e a Inquisição será realizada de acordo com a lei.

Então, voltando-se para o velho com óculos de ouro, que descrevi, cumprimentou-o calorosamente com ambas as mãos e disse:

— Barão, como posso lhe agradecer? Como podemos nós todos agradecer a você? Vai livrar esta região de uma praga que tem açoitado seus habitantes por mais de um século. O inimigo terrível, graças a Deus, está, finalmente, localizado.

Meu pai levou o estranho para um lado e o General os seguiu. Sei que ele o levou para longe de meus ouvidos para que pudesse relatar meu caso e eu os vi muitas vezes olhar rapidamente para mim, enquanto a discussão prosseguiu. Meu pai veio até mim, beijou-me de novo e de novo e conduzindo-me para fora da
capela, disse:

— É tempo de regressar, mas antes de ir para casa, temos de acrescentar ao nosso grupo o bom padre, que vive um pouco além daqui, e persuadi-lo a acompanhar-nos ao schloss.

Nessa questão fomos bem sucedidos e eu estava feliz, inexprimivelmente fatigada quando chegamos em casa. Mas a minha satisfação foi alterada para consternação ao descobrir que não havia notícias de Carmilla. Da cena que havia ocorrido na capela arruinada nenhuma explicação me foi oferecida a mim e ficou claro que era um segredo que meu pai, no presente, estava determinado a manter de mim. A sinistra ausência de Carmilla tornou a lembrança da cena mais horrível para mim. As providências para a noite foram singulares. Duas servas e Madame foram se sentar em meu quarto naquela noite. O eclesiástico com o meu pai mantiveram vigilância no adjacente vestíbulo.

O padre tinha realizado certos ritos solenes naquela noite, de cujo teor eu nada entendi até que compreendesse a razão dessas extraordinárias precauções tomadas para a minha segurança durante o sono.
Tudo se esclareceu alguns dias mais tarde. O desaparecimento de Carmilla foi seguido pela supressão de meus sofrimentos noturnos.

Você já ouviu falar, sem dúvida, da terrível superstição que prevalece na Alta e Baixa Estíria, na Morávia, Silésia, na Turco-Sérvia, na Polônia, mesmo na Rússia. A superstição, assim podemos denominá-la, do vampiro. Se testemunhos humanos, tomados com todo o cuidado e solenidade, judicialmente, diante de inúmeras comissões, cada uma delas constituída de muitos membros, todos escolhidos pela integridade e inteligência, e relatórios constituídos mais volumosos talvez do que exista sobre qualquer outra classe de casos, vale alguma coisa, é difícil negar ou mesmo duvidar da existência de tal fenômeno como o vampiro.

De minha parte não ouvi nenhuma teoria com a qual explicar o que eu própria testemunhei e experimentei que não as fornecidas pela antiga e bem atestada crença do país. No dia seguinte, o processo formal teve lugar na Capela de Karnstein. O túmulo da Condessa Mircalla foi aberto e o General e meu pai reconheceram cada um sua pérfida e bela convidada, na face então revelada. Os traços, apesar de cento e cinqüenta anos já terem passado desde seu funeral, estavam coloridos com o calor da vida. Seus olhos estavam abertos. Nenhum cheiro cadavérico exalava do caixão. Os dois médicos, um oficialmente presente, outro por parte do promotor do inquérito, comprovaram o maravilhoso fato de que havia uma fraca, mas perceptível respiração e uma ação correspondente do coração. As pernas estavam perfeitamente flexível, a carne elástica. O plúmbeo caixão estava repleto de sangue, no qual, a uma profundidade de sete polegadas, o corpo jazia imerso. Aí, então, foram admitidos todos os indícios e provas de vampirismo. O organismo,
portanto, em conformidade com a antiga prática, foi erguido e uma aguçada estaca foi enterrada através do coração do vampiro, que proferiu um pungente guincho no momento, em todos os aspectos tal como pode escapar de uma pessoa viva na agonia extrema. Em seguida, a cabeça foi decepada e uma torrente de sangue fluiu do pescoço cortado. O corpo e a cabeça foram colocados juntos numa pilha de madeira e reduzidas a cinzas, que foram atirados no rio e espalhadas ao acaso. Aquele território nunca mais foi afetado pelas visitas de um vampiro. Meu pai tem uma cópia do relatório da Comissão Imperial, com as assinaturas de todos os que estiveram presentes no processo, apostas para validar a declaração. É a partir desse documento oficial que resumi minha narrativa dessa última cena chocante.

XVI - Conclusão

Eu escrevo tudo isso para você supondo compostura. Mas, longe disso, não posso pensar sobre o assunto sem agitação. Nada além de seu desejo tão repetidamente expresso poderia ter-me induzido a sentar-me para uma tarefa que enfraqueceu meus nervos durante os meses seguintes e reduzindo uma sombra de indescritível horror que, anos após a minha libertação, continuou a fazer meus dias e noites terríveis e a solidão insuportavelmente fantástica.

Permita-me acrescentar uma ou duas palavras sobre esse singular Barão Vordenburg, a cuja curiosa erudição ficamos em débito pela descoberta do túmulo da Condessa Mircalla. Ele fixara moradia em Graz, onde, vivendo uma vida de mero pedinte, que era tudo que lhe restara da uma vez principesca propriedade de sua família, na Alta Estíria, dedicou-se à minuciosa e laboriosa investigação da maravilhosamente autenticada tradição do vampirismo. Ele tinha nas pontas dos dedos todas as grandes e pequenas obras sobre o assunto. Magia Posthuma, Phlegon de Mirabilibus, Augustinus de cura pró Mortuis, Philosophicae et Christianae Cogitationes de Vampiris, por John Christofer Herenberg e um milhar de outras, entre as quais me lembro apenas alguns dos que ele emprestou a meu pai. Ele tinha uma volumosa compilação de todos os processos judiciais, de onde extraiu um sistema de princípios que parecem governar, alguns sempre e outros apenas ocasionalmente, a condição do vampiro.

Posso citar, de passagem, que a palidez mortal atribuída a esse tipo de revenante é uma mera ficção melodramática. Apresentam-se, na sepultura e quando se mostram na sociedade humana, a aparência de vida saudável. Quando reveladas à luz em seus caixões, eles apresentam todos os sintomas que são enumerados como aqueles que provaram a vida vampiresca da Condessa Karnstein há muito morta. Como eles escapam de suas sepulturas e retornam a elas por algumas horas todos os dias, sem perturbar o reboco ou deixar quaisquer vestígios de perturbação no estado do caixão ou do cimento, sempre foi admitido como sendo absolutamente inexplicável. A infame existência do vampiro é sustentada pelo renovado sono diário na sepultura. Sua horrível luxúria por sangue vivo supre o vigor da sua existência acordada. O vampiro é propenso a ficar fascinado com uma absorvente veemência, lembrando a paixão do amor, especialmente por pessoas. Na perseguição a essas irá exercitar inesgotável paciência e astúcia, pois o acesso a um determinado objetivo pode ser obstruído uma centena de maneiras. Ele nunca vai desistir enquanto não tiver satisfeito sua paixão e drenada a própria vida da vítima cobiçada. Mas irá, nesses casos, prolongar seu mortífero gozo com o requinte de um gastrônomo e ampliá-lo através das progressivas investidas de uma ardilosa abordagem. Nesses casos, parece que anseiam por algo parecido com simpatia e aprovação. Normalmente vai direto ao seu objetivo, subjuga-o com violência e estrangula e exaure muitas vezes em um único banquete.

O vampiro é, aparentemente, sujeito, em determinadas situações, a condições especiais. No caso particular que lhe relatei, Mircalla parecia ser limitada a um nome que, se não fosse o verdadeiro, deveria, pelo menos, reproduzir, sem omissão ou adição de uma única letra, aquele que, como dizemos, anagramaticamente o compõem. Carmilla fez isso. Assim fez Millarca.

Meu pai relatou ao Barão Vordenburg, que permaneceu conosco por duas ou três semanas após a expulsão de Carmilla, a história do fidalgo morávio e do vampiro do adro de Karnstein e, então, perguntou ao Barão como ele tinha descoberto a posição exata do túmulo esquecido da Condessa Mircalla há tanto tempo esquecida. A grotesca face do Barão abriu-se em um misterioso sorriso, ele procurou, ainda sorrindo por seus desgastados óculos, tateando-os.

Depois, olhando para cima, ele disse:

— Tenho muitas revistas e outros documentos escritos por esse homem notável. O mais curioso entre eles é um que trata da visita do qual você fala, a Karnstein. A tradição, como é evidente, tinge e distorce um pouco. Ele pode ter sido designado como um nobre morávio, pois tinha mudado sua residência para a região e foi, por seu turno, um nobre. Mas ele era, na verdade, um nativo da Alta Estíria. É o suficiente dizer que, na mais tenra juventude, tinha sido um amante apaixonado e favorecido da bela Mircalla, Condessa Karnstein. Sua morte precoce mergulhou-o em inconsolável dor. É da natureza dos vampiros crescer e multiplicar, mas de acordo com uma determinada e fantasmagórica lei.

— Suponha, de início, um território perfeitamente livre dessa praga. Como ela começa e como se multiplica? Eu vou dizer. Uma pessoa mais ou menos perversa põe um fim a si mesmo. Um suicida, sob certas circunstâncias, torna-se um vampiro. Esse espectro visita as pessoas que vivem em seus sonos. Elas morrem e, quase invariavelmente, na sepultura transformam-se em vampiros. Isso aconteceu no caso da bela Mircalla, que era assombrada por um desses demônios. Meu antepassado, Vordenburg, cujo título ainda ostento, logo descobriu isso e no decorrer dos estudos a que se dedicou, aprendi muito mais.

"Entre outras coisas, ele concluiu que a suspeita de vampirismo iria provavelmente cair, mais cedo ou mais tarde, sobre a finada, que em vida havia sido seu ídolo. Ele concebeu o horror de seus restos sendo profanados pela indignação de uma execução póstuma. Ele deixou um curioso documento para provar que o vampiro, por sua expulsão da sua infame existência, é projetado para uma vida muito mais horrível. Resolveu salvar a sua antes amada Mircalla disso.

Ele desenvolveu o estratagema de encenar uma pretensa remoção de seus restos mortais e uma verdadeira obliteração de seu túmulo. Quando a idade se abateu sobre ele e sobre o vale, ele olhou para trás, para as cenas que estava deixando e considerou, com um espírito diferente, o que ele tinha feito e um horror tomou posse dele. Ele fez o traçado e as notas que me orientaram ao local exato e elaborou uma confissão da decepção que tinha praticado. Se ele tentava qualquer outra ação quanto a isso, a morte o impediu. A mão de um remoto ascendente dirigiu, muito tarde para muitos, a procura pelo covil da besta."

Conversamos um pouco mais e, dentre as outras coisas que disse foi:

— Um sinal do vampiro é o poder da mão. A delgada mão de Mircalla fechara-se como um vício de aço no punho do General, quando ele levantou o machado para golpear. Mas seu poder não se limita ao seu aperto. Deixa um entorpecimento na parte que agarra, do qual lentamente, ou mesmo nunca, se recupera totalmente.

Na primavera seguinte, meu pai me levou a um passeio através da Itália. Nós permanecemos afastados por mais de um ano. Foi muito antes do terror dos acontecimentos recentes decrescer. Até agora a imagem de Carmilla retorna à memória com ambígua alternância, às vezes, a lúdica, lânguida, linda menina; às vezes o convulso demônio que vi na igreja arruinada. Muitas vezes, em um devaneio que inicio, imagino ouvir os passos leves de Carmilla na porta da sala de estar.



Por Mariana Oliveira


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